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LIVROS/LANÇAMENTOS
"A TARDE DA SUA AUSÊNCIA"
Novo romance explora recurso da repetição
Cony desenrola processo de dissolução de uma família
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Há um recurso estilístico,
nesse novo romance de Carlos Heitor Cony, com o qual somos confrontados a cada página:
a repetição. O autor, colunista da
Folha, rediz trechos, informações
e até capítulos inteiros. Explica
ele, talvez como advertência, na
abertura: "Repeti cenas e situações para que eu próprio acreditasse na perdoável miséria dos
personagens".
Encontramos de fato bastante
miséria humana, ainda que em
tom menor, nesse relato sobre a
trajetória de uma família carioca,
os Machado Alves.
O patriarca, nascido em paupérrima aldeia do norte de Portugal,
chega ao Brasil no final do século
19. Transporta muita mala alheia
na estação da Central antes de
comprar o elegante Hotel de
França, na Praça 15.
Embora se torne milionário, expulsa os filhos quando eles completam 15 anos, para que possam
fazer fortuna com as próprias
mãos. Só um se dá bem, de forma
torta: Álvaro. De encerador em
casa de desembargador passa a
escrivão de vara cível servindo de
testa-de-ferro para patrão corrupto, promovido a presidente de
tribunal.
É do núcleo da família de Álvaro
que deriva a maior parte das intrigas do romance. O escrivão tem
duas filhas. Ex-miss do Tijuca Tênis Clube, Dalva é casada com
Henrique, um advogado sem emprego que vive de favor no casarão dos Machado Alves, em Ipanema. A colegial Vera mantém os
laços da família com a zona norte,
indo de motorista para a escola
tradicional na Tijuca.
À noite, a família se reúne em
torno da roleta e do pano verde
esticado na copa. Ao lado, observa-os o lustre de cristal, resgatado
da massa falida do Cassino da Urca. Bem pouco desse esplendor
kitsch e bem poucas dessas pessoas sobreviverão até o final do
romance.
Voltemos ao mecanismo da repetição, que nos lembra algo mais
próximo da poesia, a rima. Sabemos que, antes da literatura escrita, a repetição de sons, além de estrofes e de motivos, ajudava os aedos a memorizar versos como os
de Homero. Há, portanto, uma
consonância entre esse recurso
mnemônico e um romance que
procura resgatar a memória de
uma família.
No início, Henrique recebe anonimamente, via internet, uma antiga foto tirada nos idos de 1960.
Estão todos lá, menos Vera, que
possivelmente seria a fotógrafa.
Em seu lugar, estende-se uma rede (de dormir).
É a partir do recebimento desta
foto antiga que o fio da história
dos Machado Alves é puxado,
quase de uma vez, até as raízes
portuguesas.
Do método mecânico de reprodução de imagens -a fotografia- passamos então à via eletrônica de copiagem e disseminação
de dados- a internet. Por meio
da rede da web, a rede de relações
tortuosas dos Machado Alves nos
é atualizada, reiterada e enriquecida. Para Henrique, ademais, a
rede tem um outro significado,
pois foi lá que ele e Vera certa tarde trocaram carícias amorosas
enquanto Dalva dormia no quarto ao lado.
A teia de repetições exerce assim vários papéis: repisa do caráter dúbio dos personagens, recuperação da memória, reorganização dos fragmentos narrativos (à
moda musical ou poética).
Além disso, como uma fotografia esmaecida ou um tango fora de
moda, lembra-nos que "tudo se
perde". Do lustre decadente à rede sibarita, desenrola-se sem alarde o processo de dissolução de
uma família.
A Tarde da Sua Ausência
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (168 págs.)
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