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CONTARDO CALLIGARIS
Ajudar é difícil
O que fazer para ajudar um vira-lata desconfiado que queira atravessar, à noite, a av. Sapopemba?
NUMA MADRUGADA recente,
entre sexta e sábado, levei
um amigo para sua casa na
zona leste de São Paulo. No fim, às
duas da manhã, encontrei-me estacionado na avenida Sapopemba, na
frente do terminal rodoviário, só
que do outro lado, no sentido centro-bairro. Chovia uma chuva de inverno, fina e contínua.
Naquela altura da avenida, há dois
barzinhos com samba ao vivo e, ao
lado, uma carrocinha de churrasco.
Na calçada, por causa da chuva, só
havia dois bêbados idosos que festejavam balançando precariamente.
No meu retrovisor esquerdo, apareceu, entre os carros estacionados
atrás de mim, um vira-lata preto e
magro, com a pata anterior direita
quebrada. Ele tentava atravessar a
avenida. Aventurava-se, mancando,
na pista, mas, assustado pelos faróis
dos carros que chegavam rápidos e
sem interrupção, ele recuava precipitadamente. Duas vezes seguidas,
fechei os olhos, imaginando que o
cachorro seria esmagado. Mas ele
conseguiu voltar atrás a tempo.
O que havia do outro lado da avenida que o levava a tentar aquela travessia suicida? Talvez um restaurante amigo que deixa os restos para
os vira-latas, talvez uns amigos ou
uma cadelinha com a qual ele sonhava. O fato é que ele queria atravessar.
Eu não tinha guarda-chuva. Melhor assim: os vira-latas desconfiam
de qualquer objeto que se pareça
com um bastão. Desci do carro e
chamei sua atenção: "Pssss, cachorro". Olhou para mim, perplexo: "O
que este idiota quer de mim?".
Se tentasse parar o trânsito para
ele atravessar, acabaríamos ambos
esmagados. Ou talvez só eu, o que
tampouco seria um desfecho ideal.
Usar meu cinto como uma coleira e
ajudá-lo a atravessar parecia uma
boa idéia, só que, antes que conseguisse prendê-lo, ele me morderia,
com razão. Ganhar sua confiança
para que aceitasse atravessar caminhando do meu lado, como faziam
meus cachorros, levaria um mês
de treino.
Decidi criar uma diversão que o
convencesse a ficar deste lado da
avenida. "Cachorro, vem cá", chamei. E fui me aproximando da carrocinha do churrasco, fazendo o necessário para que ele não me perdesse de vista. Os dois bêbados deviam
achar que estava mais bêbado do
que eles. Nesta altura, o cachorro
mantinha uma distância prudente,
mas estava interessado e tinha desistido de atravessar.
Comprei dois espetinhos, agachei-me e dispus um primeiro pedaço de carne sobre um guardanapo de
papel, no chão. Recuei, agachado,
para que ele se sentisse seguro e
avançasse para abocanhar a carne.
Avancei para servir o segundo pedaço, e ele recuou. Ficamos nessa coreografia, ele para trás, eu para frente e inversamente, até o fim dos pedaços que tirei dos espetos. Estiquei
minha mão esquerda.
Desta vez, ele avançou e cheirou
minha mão. A articulação da pata
quebrada era literalmente virada no
sentido errado. Não tentei acariciá-lo, algo me dizia que ele acharia meu
gesto abusivo, agressivo.
Poderia ligar para uma colega psicóloga que se ocupa da zoonose nos
animais de rua. Mas, se ligasse, às
duas da manhã, por esta "urgência"
na avenida Sapopemba, ela se preocuparia mais comigo do que com o
cachorro; além disso, o que ela poderia fazer que não destinasse o cachorro a uma morte que ele certamente não estava pedindo?
E se eu levasse o cachorro para casa? Talvez um veterinário conseguisse endireitar sua pata. Talvez
nos tornássemos bons amigos. Mas
quem diz que o cachorro quisesse se
tornar um enfeite doméstico? E eu
ia fazer o quê com todos os próximos
cachorros que encontraria no meu
caminho? Fundar um abrigo?
Disse: "Cachorro, não atravessa
agora, entendeu? Fica deste lado,
que é melhor". Subi no carro e saí
lentamente, de olho no retrovisor
para ver se meu amigo voltava ou
não às suas tentativas perigosas
de atravessar a avenida. Avancei
até o retorno e tomei o caminho do
centro. Ao passar de novo na frente
da rodoviária, cruzei os dedos, esperando que ele não estivesse morto
no meio da pista. Não estava. Não
o vi mais.
No longo caminho de volta, liguei
a calefação ao máximo para secar
minha roupa e meus ossos encharcados. Estava com a sensação de ter
protagonizado uma espécie de frustrante parábola sobre a dificuldade
de ajudar o próximo.
Tudo bem, daqui alguns dias, não
vai sobrar nada daquela noite. Só esta coluna e, no meu carro, o cheiro
deixado pelo longo trajeto com minha roupa úmida, um cheiro de cachorro molhado.
ccalligari@uol.com.br
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