São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 2011
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Negro nordestino maravilhou Carella Fascinação de escritor argentino pela mistura de raças e pela sexualidade dos recifenses são impulso de "Orgia" Solidão no intervalo da vida acadêmica levou teatrólogo a mergulhar no universo gay, senha de sua prisão e tortura
FABIO VICTOR DE SÃO PAULO Há 50 anos, ao deixar a mulher em Buenos Aires e aceitar o convite do teatrólogo Hermilo Borba Filho para dar aulas de teatro no Recife, Tulio Carella iniciava uma jornada que o conduziria ao prazer selvagem, à tortura e, por fim, à ruína. Teatrólogo, poeta, tradutor e ensaísta argentino, Carella (1912-1979) era, naquele 1960, um intelectual respeitado em seu país. Foi indicado a Hermilo (1917-1976) pelo italiano radicado em São Paulo Alberto d'Aversa (1920-1969), a quem fora feito o convite original. No Brasil, lhe atraíam "a brasa que arde como um fogo maravilhoso e perdurável", o "duplo aspecto destruidor e purificador que dá luz e sombra, ilumina e barra o caminho ao mesmo tempo". Achava que o país deveria se chamar "Estados Unidos do Fogo". No Recife, encantou-se com os negros ("A cor escura dos nordestinos me atrai como um abismo") e, guiado pela solidão nos grandes intervalos da atividade acadêmica, entregou-se à libertinagem sexual, principalmente homossexual. Vagava pelo centro em encontros e bolinações com homens rudes, operários de pouca instrução. Registrou tudo, com crueza de detalhes íntimos, em seus diários. Numa época em que crescia o desconforto dos militares com o momento político (Jango assumiria o governo em 1961), num bastião esquerdista (berço das Ligas Camponesas de Francisco Julião), a movimentação sorrateira de Carella foi tomada por subversão política. Supondo que ele era o elo entre as Ligas e Cuba, os militares o prenderam e torturaram. Ao acharem os diários, descobriram que tudo não passava de orgia. Despacharam-no de volta para Buenos Aires, não sem antes ameaçar divulgar os diários, caso ele denunciasse o que sofrera. Em 1968, Borba Filho convenceu Carella a publicar os diários no Brasil, numa coleção erótica criada pelo teatrólogo pernambucano na José Alvaro Editor. "Orgia", o livro, que passou anos esgotado, tornou-se um cult da literatura gay e raridade até mesmo em sebos. Ganha agora reedição pela Opera Prima Editorial. É TUDO VERDADE Quando voltou à Argentina, Carella trabalhou ficcionalmente os diários e fez um "roman à clef", história real contada como ficção. O livro alterna narração em terceira pessoa com relato de diário tradicional, em primeira pessoa. Responsável pelo novo volume, o jornalista e editor Alvaro Machado assina as notas e uma introdução que situa historicamente a obra e seu autor. Ele viajou a Buenos Aires e ao Recife e revisou lapsos de digitação, pontuação e montagem tipográfica da edição de 1968. Machado conheceu "Orgia" por meio de "Devassos no Paraíso" (Record, esgotado), de João Silvério Trevisan, estudo sobre a homossexualidade no Brasil e maior responsável por difundir Carella e sua obra depois de esgotada a edição original. Autor e livro viraram ícones da militância gay -Carella foi listado pelo Grupo Gay da Bahia como um dos "cem desviantes sexuais mais célebres na história do Brasil". Em "Devassos", Trevisan transcrevia o trecho em que o autor faz sexo com um halterofilista sarará chamado King-Kong (leia ao lado), depois reproduzida em outras obras fora do Brasil. "Do que eu conheço de literatura e de arte homoerótica, "Orgia" é uma das coisas mais emblemáticas e contundentes, inclusive pela qualidade literária", diz Trevisan. O escritor classificou de "muito estranho" não ter sido consultado por Machado para a reedição. "Porque, na verdade, eu que revelei Tulio Carella para o Brasil e os argentinos. Talvez houvesse uma competição embutida." O sociólogo e professor da Unicamp Laymert Garcia dos Santos destaca o caráter socioantropológico de "Orgia", lembrando que, ao longo da obra, Carella repete uma pergunta: "Que é um negro?". "O livro traz uma visão diferente: qual é o modo de ser do negro na intimidade absoluta. O que interessa é o ponto de vista ontológico -o modo de ser negro- e o ponto de vida epistemológico -como posso conhecer o modo de ser negro, mergulhando fundo na sexualidade deles." ORGIA AUTOR Tulio Carella TRADUÇÃO Hermilo Borba Filho EDITORA Opera Prima QUANTO R$ 64 (312 págs.) AVALIAÇÃO bom Texto Anterior: Soul de protesto conduz show de Legend e Roots Próximo Texto: Trecho Índice | Comunicar Erros |
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