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ARTIGO
"E a Justiça não socorre o dorminhoco..."
ANTONIO CICERO
especial para a Folha
Foi antiética a atitude do sr. Augusto Massi ao escrever artigo, publicado na Folha no último dia 24
de abril, sobre os finalistas de poesia do Prêmio Nestlé de Literatura.
Ele não devia tê-lo feito, pois é
também o autor do texto introdutório de um desses finalistas, isto é,
de "Resumo do Dia", de Heitor
Ferraz.
Não constitui atenuante o fato de
que ele mesmo confessa ter assinado o referido texto, pois isso não o
impede de tentar desclassificar os
livros dos dois outros finalistas da
mesma categoria (o de Álvaro
Mendes e o meu), nem de recomendar, sucinta, porém irrestritamente ("merece ser lido e relido"), o livro que apadrinha, nem
ainda de lamentar não poder "defendê-lo" ainda mais.
Eticamente, ele não podia ter feito nenhuma dessas coisas. É lamentável que o sr. Massi não tenha
adotado a única atitude que seria
digna nessas circunstâncias, a de
recusar-se a comentar qualquer
um dos três estreantes.
Contra o meu livro, o sr. Massi
faz uma acusação típica de quem
honestamente não teria o que criticar. Vale a pena citar essa jóia.
"Paradoxalmente, os bons momentos do livro abrem caminho
para a percepção do quanto a sua
poética é oscilante e desigual", diz
ele.
Primeiro, o epíteto "desigual" é
vazio, pois poderia ser aplicado a
qualquer obra, até mesmo, por
exemplo, a uma coletânea de sonetos de Shakespeare.
Mas suponhamos que meu livro
mereça, mais do que a maior parte
dos livros, ser chamado de "desigual". Um livro excepcionalmente desigual é um livro que tem uns
poemas muito bons e outros muito ruins.
Basta um segundo de reflexão
para compreender que um livro de
poemas assim seria melhor do que
qualquer livro medianamente
bom.
Em poesia, o adjetivo "medíocre" é tão pejorativo quanto
"ruim" porque, para ela, só valem os vôos altíssimos. Uma águia
pode alguma vez voar mais baixo
do que uma galinha, mas é claro
que os vôos mais altos das galinhas
jamais, nem de longe, alcançam a
altura dos vôos altos das águias.
Basta um só desses vôos para que
um livro de poesia valha mais do
que qualquer livro que se mantenha consistentemente à altura do
mais alto vôo de que sejam capazes
as galinhas.
Coisas semelhantes poderiam
ser ditas quanto a ser "oscilante"
a minha poética. Também essa
qualificação é vazia e enganosa,
pois pode ser que, assumindo riscos, ultrapasse a Taprobana das
poéticas já pacíficas.
Contudo, embora, a rigor, as
"críticas" do sr. Massi não digam
nada, elas não deixam de cumprir
a única e pérfida função para a
qual foram escritas: a de macular o
meu livro na cabeça do leitor irrefletido.
Águas turvas
Além disso, tentando pescar em
águas turvas, o sr. Massi questiona
também o fato de Álvaro Mendes
(porque, tendo 57 anos, não seria,
segundo ele, suficientemente jovem) e eu (por ser letrista conhecido) concorrermos na categoria
dos "estreantes".
Nada mais sórdido pois, como se
trata de nossos primeiros livros, as
regras não nos permitiriam concorrer na categoria alternativa, a
dos "autores consagrados".
Se o tivéssemos feito, seríamos,
sem dúvida, acusados por ele mesmo de impostores. O fato é que
qualquer pessoa de boa-fé reconhecerá não ser esse o momento
para questionar as regras do concurso, mas sim de observá-las estritamente.
Naturalmente, nem o próprio
Massi tem a veleidade de ser capaz
de mudar as regras a essa altura:
basta-lhe desmoralizar os concorrentes de seu "protégé".
Ao "assumir publicamente a defesa" (as palavras são dele) do livro com o qual já se comprometera, o sr. Massi não tem escrúpulos
em fazer aquilo que retoricamente
condena, isto é, nas suas próprias
palavras, submeter "os autores às
piores práticas de uma campanha
política, expondo-os aos tradicionais lobbies e toda a sorte de corporativismo".
Percebemos melhor quão pertinentes são essas palavras quando
nos lembramos que o sr. Massi é
professor da USP e Heitor Ferraz,
editor-assistente da Edusp. Mas a
verdade, felizmente, é que semelhante atitude não é comum entre
os finalistas ou amigos dos finalistas do Prêmio Nestlé.
A maior parte de nós não fez
campanha alguma. Eu, por exemplo, não pedi sequer a amigos íntimos ou parentes que fossem às livrarias votar em mim.
Tampouco esta carta poderia fazer parte de campanha alguma,
pois, quando for publicada, já terá
passado o momento decisivo para
a premiação, que, terá sido, naturalmente, a semana subsequente à
publicação do artigo do sr. Massi.
De toda maneira, "dormientibus non succurrit jus": a Justiça
não socorre o dorminhoco. Eu não
poderia deixar de registrar que foram os interesses mais mesquinhos que o levaram a tentar menoscabar a minha obra.
Antonio Cicero é poeta, filósofo e letrista, autor de "Guardar" (editora Record)
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