São Paulo, Segunda-feira, 10 de Maio de 1999
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FERNANDO GABEIRA

Minha alma cala ao ver o Rio de Janeiro

A revista "Granta" publica um número especial sobre Londres. Na apresentação, diz que a cidade está envolta em lendas. Todos os que vão conhecê-la já trazem algumas fantasias sobre ela. Lembrei que o Rio de Janeiro também é assim.
Quando menino, as excursões nos levavam a Petrópolis. Pedíamos aos professores que deixassem os ônibus subirem a montanha para que, pelo menos, víssemos as luzes do Rio. Era emocionante. O Rio condensava tudo de bom que atribuíamos a uma cidade: beleza, tolerância, alegria.
Dói ver um sonho de cidade mergulhado em crise ambiental. O esgoto está sendo jogado nas praias. As lagoas da Barra da Tijuca estão à beira da morte. Não conseguem mais dissolver a quantidade de dejetos que nelas é lançada. Viraram cloacas.
Nos anos 50, quando cheguei, não suspeitava que isso poderia acontecer. Algumas vozes sutilmente nos alertaram: Tom Jobim, Carlos Drummond de Andrade, com suas crônicas diárias, e, talvez, o próprio Rubem Braga intuíram isso nas entrelinhas de seus cantos de amor à cidade.
Quando voltei do exílio, no fim da década dos 70, as águas do Rio já não eram as mesmas. No entanto, as pessoas continuavam tomando banho de mar e, na verdade, graças às melhores ligações entre as zonas norte e sul, as praias pareciam mais cheias.
Hoje a cidade vive um momento delicado. Todos se limitam a olhar apenas a beleza das ondas batendo na praia. Ninguém cai no mar. O que é sentido pela maioria esmagadora, nesse momento de crise ambiental, já era vivido por algumas pessoas que riscaram as águas do Rio de seu mapa de mergulho.
A súbita tomada de consciência se deve ao conserto do emissário submarino. O esgoto volta à praia e todos esperam o dia em que volte a ser lançado ao mar. E, com a ajuda das correntes, distancie-se da costa.
Essa é a questão. Quando o emissário for reparado -creio que as praias serão reabertas hoje-, vai se criar uma nova ilusão de normalidade. O esgoto continuará sendo lançado ao mar e a melhora de qualidade das águas nas praias deve contribuir para que todos pensem que não há mais problemas.
O fundamento dessa tranquilidade é a idéia de que é assim em todo o mundo, que o esgoto deve mesmo correr para o mar. Em muitos lugares do mundo, já não é mais assim. Nos Estados Unidos, há legislação contra isso desde o meio da década de 80.
Em algumas baías famosas, há quatro tratamentos do esgoto, antes de ser lançado. Nos outros lugares, há pelo menos dois tratamentos.
Numa cidade tão bonita e charmosa como o Rio isso não deveria ser feito apenas porque é bom para a natureza. As praias têm um papel estratégico na própria sobrevivência econômica. Os turistas não vão se contentar, como alguns de nós se contentam, em ter apenas um contato visual com as maravilhas do Rio. Querem sentar na areia, mergulhar na água, respirar os ares marinhos.
No Rio colonial, os escravos iam todos os dias jogar os dejetos domésticos ao mar. Eram chamados de "tigres". O emissário submarino apenas substituiu mecanicamente esse processo.
Bem perto de nós, entretanto, a ciência nos coloca num outro patamar. Trabalhando com um método elaborado pelo alemão Ernest Bayer, o cientista Raimundo Damasceno consegue produzir óleo diesel do próprio esgoto. A operação demanda estações de tratamento, mas é promissora porque abre a possibilidade de uma nova fonte de energia, um combustível inclusive menos ameaçador no processo de aquecimento global.
Esses dois Rios que convivem se ignorando, o que joga esgoto no mar e o que transforma esgoto em óleo diesel, precisam se encontrar na mesma praia. No entanto, ainda parece bastante remoto o dia em que se tome uma decisão nacional de não se lançar mais dejetos humanos ao mar.
Sobrevoando em um ultraleve as lagoas da Barra da Tijuca, o jornalista Armando Nogueira ficou impressionado com o processo de degradação. A visão que ele teve de cima é confirmada aqui embaixo pelo biólogo Mario Moscatelli, que se dedica integralmente às lagoas do Rio. Algumas delas simplesmente não têm mais capacidade líquida para absorver a massa de coliformes fecais.
Se Drummond estivesse vivo, talvez reescrevesse seu poema "Os Inocentes do Leblon". Ou talvez o banisse da antologia porque não há inocentes no Leblon, nem em Ipanema ou Copacabana. Já sabemos demais. Cidades, como as pessoas, podem se suicidar lentamente. Pelo menos como cidades de lendas, como era o Rio da minha infância, sonho das noites de exílio, paixão de toda a vida.


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