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FERNANDO GABEIRA
Minha alma cala ao ver o Rio de Janeiro
A revista "Granta" publica
um número especial sobre Londres. Na apresentação, diz que
a cidade está envolta em lendas. Todos os que vão conhecê-la já trazem algumas fantasias
sobre ela. Lembrei que o Rio de
Janeiro também é assim.
Quando menino, as excursões
nos levavam a Petrópolis. Pedíamos aos professores que deixassem os ônibus subirem a
montanha para que, pelo menos, víssemos as luzes do Rio.
Era emocionante. O Rio condensava tudo de bom que atribuíamos a uma cidade: beleza,
tolerância, alegria.
Dói ver um sonho de cidade
mergulhado em crise ambiental. O esgoto está sendo jogado
nas praias. As lagoas da Barra
da Tijuca estão à beira da morte. Não conseguem mais dissolver a quantidade de dejetos
que nelas é lançada. Viraram
cloacas.
Nos anos 50, quando cheguei,
não suspeitava que isso poderia acontecer. Algumas vozes
sutilmente nos alertaram: Tom
Jobim, Carlos Drummond de
Andrade, com suas crônicas
diárias, e, talvez, o próprio Rubem Braga intuíram isso nas
entrelinhas de seus cantos de
amor à cidade.
Quando voltei do exílio, no
fim da década dos 70, as águas
do Rio já não eram as mesmas.
No entanto, as pessoas continuavam tomando banho de
mar e, na verdade, graças às
melhores ligações entre as zonas norte e sul, as praias pareciam mais cheias.
Hoje a cidade vive um momento delicado. Todos se limitam a olhar apenas a beleza
das ondas batendo na praia.
Ninguém cai no mar. O que é
sentido pela maioria esmagadora, nesse momento de crise
ambiental, já era vivido por algumas pessoas que riscaram as
águas do Rio de seu mapa de
mergulho.
A súbita tomada de consciência se deve ao conserto do emissário submarino. O esgoto volta à praia e todos esperam o dia
em que volte a ser lançado ao
mar. E, com a ajuda das correntes, distancie-se da costa.
Essa é a questão. Quando o
emissário for reparado -creio
que as praias serão reabertas
hoje-, vai se criar uma nova
ilusão de normalidade. O esgoto continuará sendo lançado
ao mar e a melhora de qualidade das águas nas praias deve
contribuir para que todos pensem que não há mais problemas.
O fundamento dessa tranquilidade é a idéia de que é assim
em todo o mundo, que o esgoto
deve mesmo correr para o mar.
Em muitos lugares do mundo,
já não é mais assim. Nos Estados Unidos, há legislação contra isso desde o meio da década
de 80.
Em algumas baías famosas,
há quatro tratamentos do esgoto, antes de ser lançado. Nos
outros lugares, há pelo menos
dois tratamentos.
Numa cidade tão bonita e
charmosa como o Rio isso não
deveria ser feito apenas porque
é bom para a natureza. As
praias têm um papel estratégico na própria sobrevivência
econômica. Os turistas não vão
se contentar, como alguns de
nós se contentam, em ter apenas um contato visual com as
maravilhas do Rio. Querem
sentar na areia, mergulhar na
água, respirar os ares marinhos.
No Rio colonial, os escravos
iam todos os dias jogar os dejetos domésticos ao mar. Eram
chamados de "tigres". O emissário submarino apenas substituiu mecanicamente esse processo.
Bem perto de nós, entretanto,
a ciência nos coloca num outro
patamar. Trabalhando com
um método elaborado pelo alemão Ernest Bayer, o cientista
Raimundo Damasceno consegue produzir óleo diesel do próprio esgoto. A operação demanda estações de tratamento,
mas é promissora porque abre
a possibilidade de uma nova
fonte de energia, um combustível inclusive menos ameaçador
no processo de aquecimento
global.
Esses dois Rios que convivem
se ignorando, o que joga esgoto
no mar e o que transforma esgoto em óleo diesel, precisam se
encontrar na mesma praia. No
entanto, ainda parece bastante
remoto o dia em que se tome
uma decisão nacional de não se
lançar mais dejetos humanos
ao mar.
Sobrevoando em um ultraleve as lagoas da Barra da Tijuca, o jornalista Armando Nogueira ficou impressionado
com o processo de degradação.
A visão que ele teve de cima é
confirmada aqui embaixo pelo
biólogo Mario Moscatelli, que
se dedica integralmente às lagoas do Rio. Algumas delas
simplesmente não têm mais capacidade líquida para absorver a massa de coliformes fecais.
Se Drummond estivesse vivo,
talvez reescrevesse seu poema
"Os Inocentes do Leblon". Ou
talvez o banisse da antologia
porque não há inocentes no Leblon, nem em Ipanema ou Copacabana. Já sabemos demais.
Cidades, como as pessoas, podem se suicidar lentamente. Pelo menos como cidades de lendas, como era o Rio da minha
infância, sonho das noites de
exílio, paixão de toda a vida.
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