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BERNARDO CARVALHO
"Não me toques"
"Noli me Tangere" ("Não
me toques" ou "Não me
retenhas", dependendo da tradução da Bíblia que você tiver em
mãos) é o título de um pequeno livro que o filósofo Jean-Luc Nancy
acaba de lançar na França (ed.
Bayard). Nancy se detém sobre
uma célebre cena do Novo Testamento descrita no Evangelho segundo São João: o instante em que, diante do sepulcro vazio,
Maria Madalena reconhece Jesus
na figura de um jardineiro e, ao
estender a mão na direção dele, é
logo alertada: "Não me toques".
A cena foi motivo para inúmeros
pintores, de Giotto a Rembrandt.
E são essas várias representações
que servem de base para as elucubrações do filósofo.
Maria Madalena chora diante
do túmulo aberto e vazio. Um jardineiro aparece e pergunta por
que ela está chorando. Ela diz que
levaram o corpo de Jesus; pergunta ao jardineiro se foi ele. E é só
quando o jardineiro diz "Maria!"
que ela por fim o reconhece. Estende o braço para tocá-lo, mas é
impedida: "Não me toques, pois
ainda não subi ao Pai". E em seguida é enviada aos discípulos
para lhes anunciar a novidade.
Na tarde do mesmo dia, Jesus
aparece aos discípulos. Tomé, que
não está entre eles, não acredita
quando lhe contam. Diz que só
acredita vendo (o corpo ferido pelos cravos na cruz). Oito dias depois, Jesus volta e manda Tomé
pôr o dedo nas feridas. Tomé enfim acredita. Então, Jesus lhe diz:
"Porque viste, creste. Felizes os
que não viram e creram".
Jean-Luc Nancy usa a parábola
para fazer uma distinção entre
crença e fé e aproveita para insinuar uma ligação essencial entre
a cena do sepulcro e a arte e a literatura modernas. É a especulação
mais surpreendente e provocativa
do livro.
A crença é uma busca de segurança. O crente precisa de segurança para acreditar e acredita
para ter segurança, como no caso
de são Tomé. É ver (e tocar) para
crer. Na fé não. Não há nenhuma
segurança. É uma aposta no vazio. A fé faz ver no banal o que os
olhos banais não podem ver. Maria Madalena reconhecendo o
Cristo num jardineiro, por exemplo. Não tocar, nesse caso, é condição para atingir o intocável e
ver o invisível. Tocar seria permanecer na ilusão do presente e das
aparências. "A crença espera o espetacular e o inventa conforme a
necessidade. A fé consiste em ver e
em ouvir onde nada é excepcional aos olhos e aos ouvidos comuns", escreve Nancy.
A fé de Maria Madalena é fidelidade ao vazio, à ausência (como
no amor). Quanto mais as pessoas tentam possuir o que amam,
mais o amor lhes escapa. O amor
é intangível. É o que se faz sentir
pela distância e pela indisponibilidade. O que aparece para Maria
Madalena e que ela não pode tocar é a presença da ausência. O
ressuscitado só existe pelo desaparecimento. Ao desaparecer, o
morto passa a existir para sempre, e é isso o que ela vê diante do
sepulcro. A aparição do ressuscitado é, na verdade, a aparição da
sua ausência. A arte moderna
também é isso. O principal não está lá. Tudo depende do espectador. Tudo está no seu olhar.
Para Nancy, arte e religião são
coisas distintas. Na arte não pode
haver crença. Há fé, no mesmo
sentido exposto pela parábola do
sepulcro: ver a ausência. Não há
mensagem, mas um eco que nos
faz "ouvir nosso próprio ouvido
ouvindo e ver nossos próprios
olhos olhando aquilo que os abre
e que se oculta nessa mesma abertura". Para Nancy, representar
na arte é "tornar intensa a presença de uma ausência, enquanto
ausência".
Daí a desconfiança e a reação
que a arte e a literatura modernas provocam nos que pretendem
enterrá-las sob o pretexto de que
são arbitrárias. Se por um lado a
fé necessária à compreensão da
representação da ausência permitiu um monte de imposturas e cabotinismos, por outro levou até as
últimas consequências a idéia de
uma verdade da arte. Os que se
incomodam com a ausência na
arte moderna agem como crentes,
precisam ver para crer, precisam
do espetáculo, o que explica em
parte o advento nas últimas décadas de mensagens e sentidos exteriores à obra, mas que lhe deram
uma presença tangível, reassegurando ao espectador um tipo fácil
de reconhecimento e assombro.
É em grande parte uma arte
alegórica, que tenta forjar o seu
significado à força como forma de
evitar encarar a ausência. É uma
arte que tem horror do vazio e
que tenta criar uma presença seja
como espetáculo sensacionalista,
seja por expressões narcisistas ligadas à biografia ou à sexualidade do artista, seja por remeter a
um engajamento qualquer que dê
ao espectador a ilusão de uma
utilidade quase jornalística do
trabalho. É uma arte de certa maneira infantil, que se recusa a encarar a morte, mesmo quando
pretende estar falando dela.
Na literatura é a mesma coisa.
A ausência alusiva tão marcante
nos textos de Beckett, para citar o
exemplo mais evidente, deu lugar
a um novo naturalismo, em que o
principal volta a ser a idéia de representação da realidade, seja no
retrato da sociedade, seja na
construção psicológica dos personagens. Entre outras consequências, essa tendência faz o leitor esquecer que a arte é o que não está
lá. E se perder na busca de alguma segurança superficial, na ilusão do reconhecimento de alguma realidade, como um crente.
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