São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2004

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NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO

Produção testa volta a temas tornados tabus nas décadas de repressão e Aids

Filme se (des)equilibra na fala represada

Divulgação
O ator Daniel Oliveira como Cazuza em cena do filme "O Tempo Não Pára", que estréia amanhã


DA REPORTAGEM LOCAL

Ao prestar depoimento sobre "Cazuza - O Tempo Não Pára", todos os envolvidos são unânimes em dizer que gostaram muito do filme -mas todos se põem a fazer ressalvas contra ele. Não deve acontecer diferente com o espectador atento que for ao cinema reviver uma das histórias mais luminosas e ao mesmo tempo sombrias do Brasil recente.
Atravessa constantemente a experiência de assisti-lo a sensação de que o que se está vendo é bom, apesar de ser ruim -ou é ruim, apesar de ser bom. Assim foi a história, assim foram e são as músicas doces e amargas de Cazuza, assim é o filme.
Jogos de duplas em conflito vão se desencadeando, sem aparente resolução. A cinematografia se desenrola quadrada, careta, enquanto conta uma história libertária, rebelde. Um ator em estado de graça (Daniel Oliveira) opera caracterização ultradisciplinada, para encenar o êxtase, a agonia e o caos de seu personagem.
As cenas de amor familiar e os diálogos entre filho e pais se entrelaçam intensos e comoventes, mas concomitantes com a crueldade do retrato de um Cazuza que nunca tivesse amado um namorado, uma namorada.
A cena da descoberta da Aids desaba linda e delicada, num lapso em que o clima de novela da Globo cede à inventividade de cinema. O personagem, que desfilava roqueiro e viril antes da Aids, vira romântico e efeminado a partir dali -ficar doente é ficar efeminado, srs. diretores, sr. ator?
Vários dos embates em dupla aparecem mal resolvidos, mas é porque são mesmo -e não se trata de demonizar a discórdia mansa em que todo mundo que amou Cazuza parece hoje viver. Não se falava abertamente sobre nenhum desses assuntos até outro dia. Ao testar a fala represada, todo mundo se atrapalha, tropeça, gagueja, engatinha.
Eis que surge, daí, o que o novelão ainda moral de Sandra Werneck e Walter Carvalho pode oferecer de inédito ao Brasil, se resultar bem-sucedido.
Pela primeira vez Cazuza será reinterpretado, repensado. Só agora se começará a entender que a Aids foi o AI-5 da geração 80, deslocado da política para o sexo. Que no Brasil as mortes de Cazuza e Renato Russo emudeceram toda a expressão masculina (hetero, bi ou homossexual, tanto faz) de mais de uma geração. E que agora isso já passou.
Passou, inclusive graças à intermediação de Cássia Eller (1963-2001), que se angustiou com o sacrifício masculino dos 80 e simbolicamente tentou atenuá-lo, oferecendo-se, ela própria, a um martírio feminino masculinizado. E graças à intermediação de Frejat, que carrega até hoje a incrível história da banda que sobrevive mesmo tendo criado e perdido (e mantido) dois compositores, dois cantores solo, dois líderes.
A dissociação entre o feminino e o masculino oculta, atrás da desistência de Cássia e da superação de Frejat, a continuação do trauma do AI-80. Mas também já é superada. É de um tempo que não parou e já passou, embora não o sintamos ainda (porque estamos todos titubeantes e incrédulos diante de ventos novos de liberdade).
Nossos meninos e meninas ligarão a TV e verão, na novela das seis, um galã romântico de um tempo anacrônico (o início do século passado), apaixonado por uma linda cabocla, sofrendo de uma doença terrível (a tuberculose). Sairão para o cinema e encontrarão um galã romântico de um tempo anacrônico (os anos 80), dando beijos de língua em rapazes bonitos, sofrendo de uma doença terrível (a Aids).
Esses dois galãs terão sido representados pelo mesmo ator. Mas, se "Cazuza" e "Cabocla" puderem ser assistidos com olhos livres (e anti-românticos), não haverá contradição nem contraste em mais esse jogo de duplos.
Seria a hora da reconciliação entre duplas de inimigos que antes só queriam saber de se anular uns aos outros para garantir sobrevivência, feito Ruth e Raquel, Luana Camará e Priscila Capricci, Chico Buarque e Caetano Veloso. E as duplas se poriam a dançar quadrilha, numa festa junina regida com amor por maestro Cazuza.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Cazuza - O Tempo Não Pára
   
Produção: Brasil, 2004
Direção: Sandra Werneck e Walter Carvalho
Com: Daniel Oliveira, Marieta Severo
Quando: a partir de amanhã nos cines Bristol, Interlagos, SP Market e circuito



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