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NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO
Produção testa volta a temas tornados tabus nas décadas de repressão e Aids
Filme se (des)equilibra na fala represada
Divulgação
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O ator Daniel Oliveira como Cazuza em cena do filme "O Tempo Não Pára", que estréia amanhã |
DA REPORTAGEM LOCAL
Ao prestar depoimento sobre
"Cazuza - O Tempo Não Pára", todos os envolvidos são unânimes em dizer que gostaram
muito do filme -mas todos se
põem a fazer ressalvas contra ele.
Não deve acontecer diferente com
o espectador atento que for ao cinema reviver uma das histórias
mais luminosas e ao mesmo tempo sombrias do Brasil recente.
Atravessa constantemente a experiência de assisti-lo a sensação
de que o que se está vendo é bom,
apesar de ser ruim -ou é ruim,
apesar de ser bom. Assim foi a
história, assim foram e são as músicas doces e amargas de Cazuza,
assim é o filme.
Jogos de duplas em conflito vão
se desencadeando, sem aparente
resolução. A cinematografia se
desenrola quadrada, careta, enquanto conta uma história libertária, rebelde. Um ator em estado
de graça (Daniel Oliveira) opera
caracterização ultradisciplinada,
para encenar o êxtase, a agonia e o
caos de seu personagem.
As cenas de amor familiar e os
diálogos entre filho e pais se entrelaçam intensos e comoventes,
mas concomitantes com a crueldade do retrato de um Cazuza que
nunca tivesse amado um namorado, uma namorada.
A cena da descoberta da Aids
desaba linda e delicada, num lapso em que o clima de novela da
Globo cede à inventividade de cinema. O personagem, que desfilava roqueiro e viril antes da Aids,
vira romântico e efeminado a partir dali -ficar doente é ficar efeminado, srs. diretores, sr. ator?
Vários dos embates em dupla
aparecem mal resolvidos, mas é
porque são mesmo -e não se trata de demonizar a discórdia mansa em que todo mundo que amou
Cazuza parece hoje viver. Não se
falava abertamente sobre nenhum desses assuntos até outro
dia. Ao testar a fala represada, todo mundo se atrapalha, tropeça,
gagueja, engatinha.
Eis que surge, daí, o que o novelão ainda moral de Sandra Werneck e Walter Carvalho pode oferecer de inédito ao Brasil, se resultar bem-sucedido.
Pela primeira vez Cazuza será
reinterpretado, repensado. Só
agora se começará a entender que
a Aids foi o AI-5 da geração 80,
deslocado da política para o sexo.
Que no Brasil as mortes de Cazuza e Renato Russo emudeceram
toda a expressão masculina (hetero, bi ou homossexual, tanto faz)
de mais de uma geração. E que
agora isso já passou.
Passou, inclusive graças à intermediação de Cássia Eller (1963-2001), que se angustiou com o sacrifício masculino dos 80 e simbolicamente tentou atenuá-lo, oferecendo-se, ela própria, a um martírio feminino masculinizado. E
graças à intermediação de Frejat,
que carrega até hoje a incrível história da banda que sobrevive
mesmo tendo criado e perdido (e
mantido) dois compositores, dois
cantores solo, dois líderes.
A dissociação entre o feminino e
o masculino oculta, atrás da desistência de Cássia e da superação de
Frejat, a continuação do trauma
do AI-80. Mas também já é superada. É de um tempo que não parou e já passou, embora não o sintamos ainda (porque estamos todos titubeantes e incrédulos diante de ventos novos de liberdade).
Nossos meninos e meninas ligarão a TV e verão, na novela das
seis, um galã romântico de um
tempo anacrônico (o início do século passado), apaixonado por
uma linda cabocla, sofrendo de
uma doença terrível (a tuberculose). Sairão para o cinema e encontrarão um galã romântico de um
tempo anacrônico (os anos 80),
dando beijos de língua em rapazes bonitos, sofrendo de uma
doença terrível (a Aids).
Esses dois galãs terão sido representados pelo mesmo ator.
Mas, se "Cazuza" e "Cabocla" puderem ser assistidos com olhos livres (e anti-românticos), não haverá contradição nem contraste
em mais esse jogo de duplos.
Seria a hora da reconciliação entre duplas de inimigos que antes
só queriam saber de se anular uns
aos outros para garantir sobrevivência, feito Ruth e Raquel, Luana
Camará e Priscila Capricci, Chico
Buarque e Caetano Veloso. E as
duplas se poriam a dançar quadrilha, numa festa junina regida
com amor por maestro Cazuza.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Cazuza - O Tempo Não Pára
Produção: Brasil, 2004
Direção: Sandra Werneck e Walter
Carvalho
Com: Daniel Oliveira, Marieta Severo
Quando: a partir de amanhã nos cines
Bristol, Interlagos, SP Market e circuito
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