|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Cânone em questão
Intelectuais discutem a atualidade das obras clássicas sobre o Brasil e as relacionam à inserção do país na modernidade
RAFAEL CARIELLO
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Eu não digo que são os três
livros fundamentais para compreender o Brasil. Não digo que
são os três maiores. Para mim e
para minha geração, são aqueles três. Eu me referi à minha
geração; nós aprendemos o
Brasil naqueles três livros."
As obras são "Casa Grande &
Senzala", de Gilberto Freyre,
"Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr., e
"Raízes do Brasil", de Sérgio
Buarque de Holanda, livro que
neste ano completa 70 anos de
sua publicação.
Quem fala é Antonio Candido, crítico literário cuja estatura é comparável à dos três grandes que ele ajudou a estabelecer como autores das interpretações fundamentais sobre a
sociedade brasileira, em prefácio de 1967, justamente para o
livro de Sérgio Buarque.
Ocorre que -disse Candido à Folha- o estabelecimento
dessa espécie de cânone, a partir de seu texto "O significado
de "Raízes do Brasil'", deu-se à
sua revelia e baseado no que ele
chama de "um mal-entendido".
Segundo o autor de "Formação da Literatura Brasileira",
há livros tão importantes antes
e depois dessa tríade nascida
sob o governo de Getúlio Vargas. Ele diz nunca ter negado
isso, já que se tratava de um relato pessoal de influências, e lamenta ter sido cobrado até
"por pessoas de responsabilidade" pela ausência deste ou
daquele livro no suposto panteão do pensamento social brasileiro.
Óbvio que o mal-entendido
diz muito da importância e do
peso para a cultura brasileira
do próprio Candido e, claro, do
significado das três obras.
Vindas a público no espaço
de uma década (o primeiro livro, de Freyre, em 1933; o último, de Caio Prado, em 1942),
essas leituras, de fato, ultrapassaram os limites da academia
-que, a rigor, começava a ser
estabelecida àquela altura no
país- e impregnaram a visão
corrente que os brasileiros têm
de si mesmos e do Brasil.
O elogio à mestiçagem como
característica peculiar e positiva do país, a compreensão da
evolução da economia brasileira a partir de ciclos ligados à
exportação de produtos-chave
e a caracterização dos brasileiros como pouco afeitos a normas gerais e impessoais definem o Brasil mesmo para
quem nunca leu as três obras.
Queira Candido ou não, elas
passaram também a ser tratadas como um conjunto fechado
e de referência (mesmo que para ser questionado) por autores
tão importantes quanto Fernando Novais, Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso e vários outros.
É preciso não criar outro
mal-entendido: Candido não
lhes tira o valor. Referindo-se à
sua geração, no prefácio a "Raízes do Brasil", diz: "São estes os
livros que podemos considerar
chave, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual
e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e
não foi, apesar de tudo, abafado
pelo Estado Novo".
Nisso, autores contemporâneos seguem sua análise. Luiz
Felipe de Alencastro, professor
de história do Brasil na Universidade de Paris - Sorbonne, diz
que "os três livros mencionados estavam reinterpretando o
país à luz das mudanças induzidas na sociedade tradicional
pela Revolução de 30".
Questionado sobre a possibilidade de incluir outros títulos
entre os fundamentais para a
compreensão do Brasil, cita
"Formação da Literatura Brasileira", do próprio Candido, e
"Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado.
Nicolau Sevcenko, professor
da Universidade de São Paulo,
que diz não simpatizar com a
idéia de um cânone, acha que
os três livros têm a virtude de
"recompor o repertório conceitual para entender aquela nova
situação". Também da USP,
Boris Fausto acrescenta: "São
ensaios que fazem parte daquele contexto de transição política, era uma época em que o
Brasil pensava que estava começando de novo".
Já o pernambucano Evaldo
Cabral de Mello aponta para o
fato de a raiz desse contexto estar mais para trás. "Essa necessidade de interpretar vem da
tradição portuguesa e espanhola do século 19, quando era
necessário se perguntar porque as coisas tinham dado errado. Nos anos 30, esse questionamento era condizente com o
Brasil. Hoje essas perguntas já
não são tão necessárias."
Elias Tomé Saliba, da USP,
concorda com a idéia de cânone "porque esses livros romperam com as compreensões anteriores do Brasil que seguiam
as receitas naturalistas, deterministas, racistas etc. São importantes porque disseram, cada um à sua maneira, que o
Brasil não tem essência, tem
história. Constituíram mergulhos originais e pioneiros na
história brasileira". Fausto
acredita que chamar a tríade de
linha de frente na sua época é
"mais do que justo, mas hoje é
preciso considerar que houve
uma produção grande, ainda
que faltem amarrações mais
amplas dos temas estudados".
O psicanalista Tales Ab'Sáber, que tem lido os "clássicos"
da interpretação social do Brasil com o intuito de ali descobrir formas de subjetividade e
suas relações com a sociedade,
afirma que o alcance dos três livros é "muito impressionante".
"Foram escritos num tempo
em que a universidade ainda
era muito frágil. São emergências de talentos individuais, relativamente jovens, de uma potência intelectual de caráter
acadêmico, praticamente sem
contexto. Isso aproxima esses
trabalhos de um fenômeno como o do Machado de Assis."
Ele vincula sua força e permanência não só à circunstância imediata de responderem
às mudanças da Revolução de
30, mas ao fato de tratarem de
um problema que, de certa maneira, só muito recentemente
se esgotou. "Os três têm esse
poder de espécies de obras-síntese do encaixe da situação do
Brasil no processo da modernidade, do lugar do país no mundo. Não deixa de ser uma situação moderna por excelência."
Apesar da força desses livros,
o cânone sempre esteve em
questão. A análise histórico-sociológica de Raymundo Faoro
em "Os Donos do Poder", por
exemplo, é citada por alguns
estudiosos, como Sevcenko e
Saliba, como um dos livros que
poderiam ser acrescentados à
lista de fundamentais para entender o Brasil.
Já o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos defende a
inclusão de Darcy Ribeiro: "Essa "santíssima trindade" é um
engodo ideológico, uma falcatrua acadêmica. Deixou de fora
"Vaqueiros e Cantadores", de
Câmara Cascudo, e Darcy Ribeiro, que foi ficou de lado porque aderiu ao getulismo".
Texto Anterior: Programação Próximo Texto: Frase Índice
|