São Paulo, sábado, 10 de junho de 2006 |
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Um entusiasta do cinema "lixuoso"
Reunião de críticas de Jairo Ferreira publicadas no "São Paulo Shimbun", retrata época conflituosa da produção brasileira
INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA Jairo Ferreira (1945-2003) ficou conhecido como autor do livro "Cinema de Invenção" e como crítico da Folha, onde trabalhou entre o final dos anos 1970 e o início dos 80. O que o organizador Alessandro Gamo recupera em "Críticas de Jairo Ferreira", volume editado pela Imprensa Oficial, é um momento que passou em branco para quase todo mundo: o período, entre 1967 e 1971, em que militou como crítico do jornal "São Paulo Shimbun". A excentricidade era completa: tratava-se da única coluna escrita em português no principal diário da colônia japonesa em São Paulo e, fora dela, ninguém o lia. O próprio crítico passeava com os recortes, que distribuía aos amigos. De início, a coluna destinava-se a criticar o cinema japonês -na época havia quatro cinemas especializados em São Paulo-, mas quando Jairo Ferreira a herdou do poeta Orlando Parolini o cinema paulista começava a experimentar uma efervescência única. Formado na tradição artesanal da Vera Cruz, pela primeira vez deixava-se permear por toda uma geração de jovens intelectuais formados na admiração pelo cinema novo e na leitura dos "Cahiers du Cinéma": Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, João Callegaro, João Silvério Trevisan, Márcio Souza, Andrea Tonacci, entre outros, chegavam ao pedaço naquele momento, dispostos a enfrentar a adversidade de produzir cinema. "São Paulo Shinbum" Jairo Ferreira chegava junto e tornou-se o grande cronista desse momento do qual se tornaria importantíssimo inventariante (com "O Cinema de Invenção"). O que era desvantagem (a semiclandestinidade do "Shinbum"), com o tempo se torna um trunfo: ninguém censurava o jornal, de modo que Jairo podia, por exemplo, espinafrar ao mesmo tempo o grande sucesso "Coração de Luto", de Teixeirinha, e o presidente da República: "Quanto ao cinema propriamente dito, "Coração de Luto" não deveria ter lugar numa coluna de crítica, pois a crítica não pode falar sobre o que é inclassificável. (...) "Coração de Luto" é certamente o filme que agrada ao presidente desta republiqueta surrealista: (...) o marechal Costa e Silva recomendou que o cinema brasileiro fizesse filmes "construtivos", onde o "bandido sempre morre no fim", pois o público "gosta disso"." Essa liberdade se transfere ao aspecto cinematográfico. O momento é um dos mais ricos da história do nosso cinema. O cinema novo existe, já cheio de contradições, mas forte. O cinema paulista busca se afirmar, num momento de censura sólida, juntando a reflexão sobre cinema, sobre o país e a necessidade de chegar ao público: "O negócio é fazer filmes péssimos. Um apanhado crítico da face oculta do cinema nacional. Filmes péssimos, mas necessários. Chegou a hora de massacrar a visão europeizante que impede o cinema nacional de ser ele mesmo." Jairo sempre foi radical e militante. Tanto avacalha o Glauber de "O Dragão da Maldade", quanto o Rubem Biáfora de "O Quarto" (de quem fora assistente, por sinal), o Joaquim Pedro de "Macunaíma", o Khouri de "As Amorosas". Mais do que nunca, o cinema brasileiro é, naquele momento, um campo de batalha -conforme a definição de Samuel Fuller. Não só o cinema, mas o Brasil propriamente dito. E o epicentro dessa batalha, dessa carnificina, no cinema, está na obra de José Mojica Marins, nosso Goya primitivo. Boca do Lixo O estilo é sempre incisivo, militante, sabendo que a crítica não é uma questão de neutralidade diante de um objeto inefável, mas de escolha. O pior partido é não tomar partido -como sustentava Francis Ponge. Jairo opta pelo cinema da Boca do Lixo e quase produz um manifesto essencial, onde o neologismo "lixuoso" ajuda a definir os filmes pobres filmados pelos jovens cineastas da época: "O cinema da Boca do Lixo não é um movimento gregário, razão pela qual não tolera demagogias e/ou teorizações de porta de boteco. O Lixão é apenas um background onde se reúnem os jovens cineastas de São Paulo, independentes e marginais. Não começa coisa nenhuma onde terminou o cinema novo. É antiideológico, renega as éticas e estéticas até então conhecidas e está explodindo como nunca". Raramente uma definição foi tão exata em sua obscuridade. Com exceção, talvez, do final: o cinema do Lixão foi implodido. Dessa batalha perdida, "Críticas de Jairo Ferreira" surge agora como uma magnífica relíquia. CRÍTICAS DE JAIRO FERREIRA Organização: Alexandre Gamo Editora: Imprensa Oficial do Estado Quanto: R$ 9 (286 págs.) Texto Anterior: Fotografia: Pinacoteca tem debate sobre novo livro de Thomaz Farkas Próximo Texto: Trecho Índice |
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