São Paulo, sábado, 10 de junho de 2006

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LIVROS

Crítica/Romance

"O Náufrago" é regido por obsessões

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"O Náufrago" é o primeiro tomo de uma trilogia publicada na década de 1980 que o escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) consagrou ao tema das artes. Dedicada à música, esta novela apresenta como um dos protagonistas o pianista canadense Glenn Gould, morto em 1982.
Pouco depois da morte do músico, o outro herói do livro, Wertheimer, enforca-se numa árvore. O enredo desenvolve-se a partir das lembranças do narrador, que, após o funeral, decide ir à casa de campo do amigo suicida, em busca de alguns manuscritos.
A história que o narrador tem a contar é a de como ele e Wertheimer, aspirantes à condição de virtuose, 28 anos antes, ao se depararem com a genialidade do então estudante Gould, percebem que estão irremediavelmente fadados a sufocar a própria ambição.
"Estudamos por uma década inteira um instrumento que escolhemos e então [...] ouvimos dois ou três compassos de um gênio e estamos acabados." Para Wertheimer, o golpe seria fatal. "Ele foi, portanto, mortalmente atingido pelos compassos das "Variações" [as "Variações Goldberg", de Bach] de Glenn."
Apesar do assunto musical ostensivo, "O Náufrago" é muito mais o retrato de obsessões -a de Gould pela arte e a de Wertheimer por não ser Gould-, plasmado no estilo repetitivo e hipnótico do texto, composto, com exceção dos três primeiros períodos curtos, de um longuíssimo parágrafo.
Sim, esse parágrafo é musical, podemos pensar, com sua intrincada rede de motivos que se entrelaçam como variações numa melodia. Mas a própria música não entra em jogo da mesma forma como em "Doutor Fausto", de Thomas Mann, por exemplo, onde a teoria de Arnold Schönberg é ficcionalmente tratada.
Há outro item daquele romance que não encontramos aqui: o humanismo. Para os artistas de "O Náufrago", a arte esgota-se em si mesma. Rejeitando o público e até a própria humanidade do artista (Gould seria uma "máquina da arte"), os personagens se vêem numa tragédia ainda mais devastadora do que a concebida por Mann: sem pecados, salvo o da existência, sem objetivos, salvo o do esgotamento, eles se debatem num inferno vazio, onde o eco de suas vozes não repercute nem em Deus nem no Diabo.


O NÁUFRAGO     
Autor: Thomas Bernhard
Tradução: Sergio Tellaroli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35,00 (144 págs.)


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