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LIVROS
Crítica/Romance
"O Náufrago" é regido por obsessões
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"O Náufrago" é o primeiro tomo de
uma trilogia publicada na década de 1980 que o
escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) consagrou
ao tema das artes. Dedicada à
música, esta novela apresenta
como um dos protagonistas o
pianista canadense Glenn
Gould, morto em 1982.
Pouco depois da morte do
músico, o outro herói do livro,
Wertheimer, enforca-se numa
árvore. O enredo desenvolve-se
a partir das lembranças do narrador, que, após o funeral, decide ir à casa de campo do amigo
suicida, em busca de alguns
manuscritos.
A história que o narrador tem
a contar é a de como ele e Wertheimer, aspirantes à condição
de virtuose, 28 anos antes, ao se
depararem com a genialidade
do então estudante Gould, percebem que estão irremediavelmente fadados a sufocar a própria ambição.
"Estudamos por uma década
inteira um instrumento que escolhemos e então [...] ouvimos
dois ou três compassos de um
gênio e estamos acabados." Para Wertheimer, o golpe seria fatal. "Ele foi, portanto, mortalmente atingido pelos compassos das "Variações" [as "Variações Goldberg", de Bach] de
Glenn."
Apesar do assunto musical
ostensivo, "O Náufrago" é muito mais o retrato de obsessões
-a de Gould pela arte e a de
Wertheimer por não ser
Gould-, plasmado no estilo repetitivo e hipnótico do texto,
composto, com exceção dos
três primeiros períodos curtos,
de um longuíssimo parágrafo.
Sim, esse parágrafo é musical, podemos pensar, com sua
intrincada rede de motivos que
se entrelaçam como variações
numa melodia. Mas a própria
música não entra em jogo da
mesma forma como em "Doutor Fausto", de Thomas Mann,
por exemplo, onde a teoria de
Arnold Schönberg é ficcionalmente tratada.
Há outro item daquele romance que não encontramos
aqui: o humanismo. Para os artistas de "O Náufrago", a arte
esgota-se em si mesma.
Rejeitando o público e até a
própria humanidade do artista
(Gould seria uma "máquina da
arte"), os personagens se vêem
numa tragédia ainda mais devastadora do que a concebida
por Mann: sem pecados, salvo o
da existência, sem objetivos,
salvo o do esgotamento, eles se
debatem num inferno vazio,
onde o eco de suas vozes não repercute nem em Deus nem no
Diabo.
O NÁUFRAGO
Autor: Thomas Bernhard
Tradução: Sergio Tellaroli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35,00 (144 págs.)
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