São Paulo, sexta-feira, 10 de junho de 2011 |
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CRÍTICA ROMANCE Tom minucioso da narrativa de Pamuk quebra o ritmo previsível do dramalhão ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA É possível apresentar "O Museu da Inocência", de Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de 2006, de formas diversas. A mais óbvia seria dizer que se trata de um romance sobre o amor arrebatado de Kemal, 30 anos, herdeiro de uma rica família de Istambul, por Füsun, a belíssima filha de parentes pobres distantes, que acabara de completar 18 anos e sonhava se tornar uma estrela de cinema. Não poderia haver quadro mais previsível dos empecilhos sociais e preconceitos que impedem os amantes de assumir o seu amor. Além de se apaixonar pela pessoa errada, Kemal o faz na pior hora, pois estava a um mês do noivado com uma jovem da sociedade, que se entregara a ele e que seria mal falada caso o casamento não se concretizasse. É enredo de dramalhão, já se vê, mas o seu desdobramento quebra a espinha previsível do gênero. Do ritmo minucioso da narrativa emerge um cenário labiríntico, que reduz a cidade a salas fechadas, palavras protocolares e olhares enviesados. Outra maneira de pensar o livro seria tomá-lo como "catalogue raisonné" em forma narrativa, de um acervo de objetos da memória, isto é, como inventário de um "museu sentimental" de Istambul, no mesmo período em que se passa a história do casal (1975-1984). Como explicar a articulação entre essas formas extremas de entender o romance: o melodrama e o catálogo? O mais simples seria dizer que a inércia de Kemal busca sustentar o seu amor por meio de uma recolha obsessiva e fetichista de objetos relacionado a Füsun: mapas, cartões-postais, entradas de cinema, menus, a lapiseira que usava, xícaras de chá, grampos de cabelos, fotos, enfeites de móveis, enfim, todo tipo de bugiganga imantada pelo toque da amada. Um objeto fatal inaugura a coleção e lhe imprime o seu caráter de erotismo evocativo e melancólico, sem exclusão do cômico: um brinco em forma de borboleta que se desprende da orelha de Füsun, mordida de leve por Kemal, no instante em que a penetrava delicadamente por trás, na tarde de uma segunda-feira de primavera. Tal é o momento catalogado no romance-museu como o mais feliz de sua vida. Assim, os interditos e preconceitos vigentes no país não são apenas objetos de denúncia ou de ficção, mas também de culto. Tornam-se impulsos contraditórios para um sem fim de invenções: um mundo de "faz de conta", o qual tanto elide a realidade como paradoxalmente lhe oferece alternativas requintadas de gozo físico e espiritual. Apenas nada pode ter de requintado o costume barato de contratar uma tradução da tradução inglesa do original turco. ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp. O MUSEU DA INOCÊNCIA AUTOR Orhan Pamuk EDITORA Companhia das Letras TRADUÇÃO Sergio Flaksman QUANTO R$ 59 (568 págs.) AVALIAÇÃO ótimo Texto Anterior: Raio-X: Orhan Pamuk Próximo Texto: Cinema - Crítica/Drama: "Vênus Negra" extrai vigor de silêncios e expõe colonialismo Índice | Comunicar Erros |
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