São Paulo, sábado, 10 de julho de 2004

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RODAPÉ

Um reencantamento do mundo

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Cada coleção é um teatro da memória, uma dramatização e uma "mise-en-scène" de passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após a morte. Ela garante a presença dessas lembranças por meio dos objetos que as evocam. É mais do que uma presença simbólica: é uma transubstanciação."
A frase do ensaísta Philipp Blom, extraída de "Ter e Manter -°Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções" (Record), ajuda a compreender "O Livro de Zenóbia", primeira obra de ficção da crítica literária e poeta Maria Esther Maciel.
Enigmático em sua simplicidade, o livro é uma espécie de baú de histórias articuladas ao redor de Zenóbia -personagem ficcional composta por caracteres que parecem extraídos de memórias e tradições familiares.
Essa ambigüidade é reforçada pela nota biográfica colocada no fim do livro: "Zenóbia nasceu na fazenda Palmyra, nos arredores de Patos de Minas, em 25 de março de 1922. (...) Dizem que escreveu três livros de poemas, dois romances, uma coletânea de 20 contos curtos, duas biografias de santas e um pequeno estudo sobre orquídeas. Quase todos inéditos".
A referência a Patos (cidade natal da própria Maria Esther Maciel) e a seca objetividade desse apêndice (que contrasta com o tom epifânico do resto do livro) sugerem que Zenóbia é uma dessas personagens que existiram em carne e osso, mas cuja biografia foi sendo alimentada pela mitologia doméstica.
Ao contrário de uma biografia romanceada, todavia, "O Livro de Zenóbia" é caleidoscópico, descontínuo, dividido em seções com textos aforísticos que descrevem cenas da infância, sonhos e pesadelos de Zenóbia, reminiscências de seus amores, amizades, animais de estimação.
Essa fragmentação obedece a um princípio de composição responsável pelos encantos de uma prosa em que os seres e as coisas se equivalem, sobrevivendo apenas naquele "teatro da memória" de que fala Blom.
As personagens de "O Livro de Zenóbia" não são nem planas nem esféricas (para usar a terminologia de Forster), pois são aprendidas apenas pelos vestígios que deixaram na lembrança: a avó quitandeira que fazia roscas de trança, o tio que queria "receber os estigmas da Paixão", o menino que "dava aulas para os vidros vazios de remédio", o gato que Zenóbia enterra em papel de seda azul.
Da mesma maneira, o mundo à sua volta é organizado segundo uma sensibilidade para as miudezas, para os aromas e sabores adormecidos no álbum de família e que, ao final de "O Livro de Zenóbia", ela vai ressuscitando por meio de receitas (pontuadas com frases que lembram os chavões das velhas cozinheiras) e de listas de nomes que materializam as obsessões da personagem ("nomes de cidades", "temperos e ervas de cheiro", "livros de cabeceira").
Algumas dessas listas -como os elencos de "peixes perplexos" ou de "aves em perigo"- trazem a marca da gratuidade, expõem, por antífrase, o caráter arbitrário dos sistemas classificatórios, lembrando a célebre enciclopédia de animais fabulosos criada por Borges e citada por Foucault no início de "As Palavras e as Coisas".
Vale observar, aliás, que Maria Esther Maciel acaba de lançar, pela mesma editora de "O Livro de Zenóbia", um belo volume de ensaios intitulado "A Memória das Coisas", em que aborda justamente o que chama de "inventários do mundo" e "imaginação taxonômica", ou seja, sistemas de classificação (e fabricação) do real formulados por autores como o cineasta Peter Greenaway, o artista Arthur Bispo do Rosário e o escritor Georges Perec (além do próprio Borges).
Como observa a autora, a compulsão de colecionar e classificar é um "antídoto contra a destrutividade do tempo e da morte". Curiosamente, "O Livro de Zenóbia" está muito distante da perturbação introduzida na ordem do mundo pelo rigor delirante daqueles artistas: sua transubstanciação se dá em surdina e corresponde a um desejo de reencantamento do mundo por meio de pequenos êxtases que desvelam assombro e estranhamento no seio daquilo que é mais cotidiano.


O Livro de Zenóbia
    
Autora: Maria Esther Maciel
Editora: Lamparina
Quanto: R$ 29,50 (160 págs.)



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