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RODAPÉ
Um reencantamento do mundo
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Cada coleção é um teatro
da memória, uma dramatização e uma "mise-en-scène" de
passados pessoais e coletivos, de
uma infância relembrada e da
lembrança após a morte. Ela garante a presença dessas lembranças por meio dos objetos que as
evocam. É mais do que uma presença simbólica: é uma transubstanciação."
A frase do ensaísta Philipp
Blom, extraída de "Ter e Manter
-°Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções" (Record),
ajuda a compreender "O Livro de
Zenóbia", primeira obra de ficção
da crítica literária e poeta Maria
Esther Maciel.
Enigmático em sua simplicidade, o livro é uma espécie de baú de
histórias articuladas ao redor de
Zenóbia -personagem ficcional
composta por caracteres que parecem extraídos de memórias e
tradições familiares.
Essa ambigüidade é reforçada
pela nota biográfica colocada no
fim do livro: "Zenóbia nasceu na
fazenda Palmyra, nos arredores
de Patos de Minas, em 25 de março de 1922. (...) Dizem que escreveu três livros de poemas, dois romances, uma coletânea de 20 contos curtos, duas biografias de santas e um pequeno estudo sobre
orquídeas. Quase todos inéditos".
A referência a Patos (cidade natal da própria Maria Esther Maciel) e a seca objetividade desse
apêndice (que contrasta com o
tom epifânico do resto do livro)
sugerem que Zenóbia é uma dessas personagens que existiram em
carne e osso, mas cuja biografia
foi sendo alimentada pela mitologia doméstica.
Ao contrário de uma biografia
romanceada, todavia, "O Livro de
Zenóbia" é caleidoscópico, descontínuo, dividido em seções com
textos aforísticos que descrevem
cenas da infância, sonhos e pesadelos de Zenóbia, reminiscências
de seus amores, amizades, animais de estimação.
Essa fragmentação obedece a
um princípio de composição responsável pelos encantos de uma
prosa em que os seres e as coisas
se equivalem, sobrevivendo apenas naquele "teatro da memória"
de que fala Blom.
As personagens de "O Livro de
Zenóbia" não são nem planas
nem esféricas (para usar a terminologia de Forster), pois são
aprendidas apenas pelos vestígios
que deixaram na lembrança: a avó
quitandeira que fazia roscas de
trança, o tio que queria "receber
os estigmas da Paixão", o menino
que "dava aulas para os vidros vazios de remédio", o gato que Zenóbia enterra em papel de seda
azul.
Da mesma maneira, o mundo à
sua volta é organizado segundo
uma sensibilidade para as miudezas, para os aromas e sabores
adormecidos no álbum de família
e que, ao final de "O Livro de Zenóbia", ela vai ressuscitando por
meio de receitas (pontuadas com
frases que lembram os chavões
das velhas cozinheiras) e de listas
de nomes que materializam as obsessões da personagem ("nomes
de cidades", "temperos e ervas de
cheiro", "livros de cabeceira").
Algumas dessas listas -como
os elencos de "peixes perplexos"
ou de "aves em perigo"- trazem
a marca da gratuidade, expõem,
por antífrase, o caráter arbitrário
dos sistemas classificatórios, lembrando a célebre enciclopédia de
animais fabulosos criada por Borges e citada por Foucault no início
de "As Palavras e as Coisas".
Vale observar, aliás, que Maria
Esther Maciel acaba de lançar, pela mesma editora de "O Livro de
Zenóbia", um belo volume de ensaios intitulado "A Memória das
Coisas", em que aborda justamente o que chama de "inventários do mundo" e "imaginação taxonômica", ou seja, sistemas de
classificação (e fabricação) do real
formulados por autores como o
cineasta Peter Greenaway, o artista Arthur Bispo do Rosário e o escritor Georges Perec (além do
próprio Borges).
Como observa a autora, a compulsão de colecionar e classificar é
um "antídoto contra a destrutividade do tempo e da morte". Curiosamente, "O Livro de Zenóbia"
está muito distante da perturbação introduzida na ordem do
mundo pelo rigor delirante daqueles artistas: sua transubstanciação se dá em surdina e corresponde a um desejo de reencantamento do mundo por meio de pequenos êxtases que desvelam assombro e estranhamento no seio
daquilo que é mais cotidiano.
O Livro de Zenóbia
Autora: Maria Esther Maciel
Editora: Lamparina
Quanto: R$ 29,50 (160 págs.)
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