São Paulo, sábado, 10 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"CRIMES IMPERCEPTÍVEIS"

Argentino une policial e matemática

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O enredo , se pensarmos bem, é estapafúrdio. Os personagens têm a densidade de uma pluma. Seu comportamento não passa pelo teste de realidade. Há pistas sem seqüência e detalhes sem conseqüência. Mesmo assim, "Crimes Imperceptíveis", terceiro romance do premiado escritor argentino Guillermo Martínez, 42, nos anima a compulsar até o fim. Por quê?
Uma das razões para o encanto é a bem bolada união entre romance policial e matemática (leia texto ao lado). Martínez conhece o segundo dos assuntos a fundo, pois, assim como o sul-africano J.M. Coetzee, formou-se na ciência de Pitágoras. Em 2003, escreveu um ensaio chamado "Borges y la Matemática".
Em "Crimes Imperceptíveis", um recém-formado estudante argentino de matemática aporta em Oxford, na Inglaterra, a fim de fazer uma especialização em lógica. Ele se hospeda na casa de uma velha viúva de um matemático, que mora com a neta.
Passados uns dias, a viúva morre, asfixiada. O herói é o primeiro a encontrar o corpo, com o professor Arthur Seldom, que fora para lá alertado por um bilhete deixado em seu escaninho, na faculdade. O bilhete dizia "o primeiro da série" e, ao lado do endereço e hora da morte da senhora, havia o desenho de um pequeno círculo.
Seldom é um badalado especialista na questão das séries lógicas. Em seu livro mais famoso, há um capítulo dedicado aos crimes em série, os quais, conclui ele, carecem de sofisticação lógica. Os assassinatos baseados na razão, como o de "Crime e Castigo", de Dostoiévski, só ocorreriam na literatura.
O crime da viúva parece ser uma resposta para Seldom. Pelo que tudo indica, o assassino pretende matar de novo. Nem que seja para provar que os criminosos são tão inteligentes quanto os matemáticos.
E, enquanto os novos crimes ocorrem, sempre acompanhados de bilhetes denunciadores e desenhos de uma série misteriosa, percebe-se que o criminoso procura dar aos assassinatos a aparência de naturalidade, como se não fossem de fato homicídios, mas mortes naturais ou simples demonstrações de um exercício de lógica.

Gênero "menor"
Talvez não haja um maior gênero "menor" do que a ficção policial. Muitos críticos torcem o nariz para escritores como Agatha Christie (embora Truman Capote a considerasse uma das mais refinadas estilistas da língua inglesa), Arthur Conan Doyle e Georges Simenon.
O preconceito aumenta quando o livro é um "whodunit", expressão sincópica da língua inglesa, que significa "quem fez?" ou "quem é o culpado?" -subgênero supostamente inferior ao do suspense, pois privilegia a mera surpresa, em vez dos ardis psicológicos.
Mas a verdade é que grandes escritores sempre foram fascinados por essa área negra da ficção, desde Edgar Allan Poe e Thomas de Quincey até Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares.
A pós-modernidade, que prefere a citação e o pastiche à verossimilhança e o realismo, recuperou o prestígio até mesmo do "whodunit", como é o caso de "O Nome da Rosa", do autor italiano Umberto Eco.
É nessa tradição que se insere o romance de Guillermo Martínez. Com sua trama que empresta ao gênero elucubrações de ordem matemática, o livro logra deixar sua marca.
Diante de tantos precursores ilustres e, desde que se perdoem seus "pecadillos" formais, não é pouca coisa.


Crimes Imperceptíveis
   
Autor: Guillermo Martínez
Tradutora: Liliana da Silva Lopes
Editora: Planeta
Quanto: R$ 34 (216 págs.)



Texto Anterior: Livros / lançamentos: "Enciclopédia" do século 20 vira almanaque
Próximo Texto: Ficção contém referências a lógicos ilustres
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.