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FERNANDO BONASSI
Os mortos do supermercado
Os mortos do supermercado devem ter comido macarronada. Era domingo, era fácil, e o Paraguai dispõe dos tomates mais saborosos do mundo globalizado. Pouca gente sabe disso,
é claro. E pelo desconhecimento
geral deste, entre outros insumos,
vivem mal e porcamente, chafurdando em terras griladas, fumando cigarros contrabandeados e
desenvolvendo câncer nos intestinos feridos de frituras, farinhas
duras e churrascos magros. Que
aquela refeição de macarrão recém-passada, al dente, molhada
de vermelho, fosse seu último desejo suculento e ardente, no entanto, não sabemos.
Os mortos daquele supermercado eram paraguaios, mas poderiam ser paulistas, portenhos,
gaúchos, nortistas. Deixaram as
aquisições de finados para esse
domingo de agosto porque era a
diversão comum que tinham. As
elites sul-americanas sabem o
gosto do que reservam ao lazer
dos miseráveis (aliás, aqueles que
afirmaram que os mortos do supermercado pertenciam à classe
média, devem uma explicação
dessa mistificação aos indigentes
deste continente). Denúncias indicam que o dono do supermercado mandou trancar as portas em
meio à confusão, por medo de
perder o dinheiro suado das mãos
dos desesperados.
Os mortos do supermercado
não se preocupavam com terrorismo. Talvez o consumismo os
provocasse. "Comprar, mesmo
que pouco, deve ser um tesão", asseguravam os anúncios explosivos da praça de alimentação. Permaneceram encurralados em
meio a gôndolas de sabão, material inflamável e o medo execrável de um proprietário que se
transformou em assassino extraordinário. As vítimas não dispunham de aparatos defensivos,
projetos imperiais e códigos laranja. Quanto às últimas, queriam apenas apalpá-las, cheirá-las, mordê-las, chupá-las...
A propósito da atitude do empresariado, agiriam diferente os
latifundiários escravistas, os reis
locais da mais-valia industrial e
os operadores do hipermercado
de nossa capital, ao verem chamas em seu circo escandaloso?
Não fritariam os palhaços com o
mesmo estardalhaço?
No fundo, o supermercado tinha razão, porque sabia que os
mortos torrados vinham sendo
depenados pelos mercados emergentes há tanto tempo que poderiam muito bem, coerentes e irados, saquear seu negócio fechado!
Os mortos do supermercado estavam fazendo as contas para ver
o que poderiam levar. A maioria
era honesta, ou trouxa, como
queiram uns e outros mais ou menos socialistas para cima de suas
massas cansadas e abatidas. As
coisas deveriam bater no caixa,
entre débitos, cheques e crediários, para o bem do locatário que
comandava as fechaduras. É sempre assim nesses contratos. Os
mortos incinerados pagaram à
vista e à força muito antes de se
perderem naquele comércio. Não
perceberam, por exemplo, no instante em que entraram, que as
portas abaixaram às suas costas
como se fossem guilhotinas à procura de pescoços. Depois foi essa
mesma lâmina que lhes esmagava a cara, deixando entrever a
imensidão dos cortiços do lado de
fora e a corrupção dos produtos
expostos do lado de dentro. Estiveram a postos e prontos para
morrer. Os mortos do supermercado são os cadáveres do encontro da volúpia de querer com o
desejo de vender!
Os carros dos bombeiros e os demais equipamentos que acudiram os mortos do supermercado
eram velhos e ultrapassados, com
sapatos furados e mangueiras
emendadas que faziam chafarizes, roubando a pressão necessária à salvação dos infelizes que
agonizavam entre carrinhos prateados e ofertas mesquinhas.
Quem são esses "hermanos" tão
ruins que estão piores do que nós,
por mais incríveis que nos pareçam? Se "o melhor do Brasil é o
brasileiro", o que podemos oferecer aos que mal ou bem exploramos num momento de desgraça?
Se fôssemos nós a lhes importar
os fogões e geladeiras estaríamos
numa fria diferente? Sobreviveriam eles à nossa roleta-russa e
aos tiroteios cruzados nos ônibus
lotados em busca de salários
achatados?
Qual é a graça de mantermos
mais essa ilha de fertilidade encruada em meio à mata úmida e
pegajosa desse mercado incomum?
E esse espetáculo de crescimento
econômico que não nos dá o prazer de sua presença, nem nos sai
da moita rala da cabeça preocupada, condenando-nos ao fogo do
inferno do eterno purgatório da
esperança?
Que mais da metade tenha se
saído morta e a outra parte, gravemente ferida, essa média se
mantém também em nossas estatísticas.
Por falar nisso, o Ministério da
Saúde do Banco Central do Mercosul informa: a prosperidade dos
mortos do supermercado foi considerada inflacionária, ficando os
mesmo sujeitos aos riscos do desafio à política de boa vizinhança e
estabilidade dos condomínios fechados dos deputados governistas
de ambos os lados.
Os mortos do supermercado,
não se iludam, são os mortos dos
mercados, dos hipermercados e
até de mercadinhos, como alguns
dos nossos. Uns morrem queimados no atacado das periferias esquecidas, outros no varejo dos vilarejos sitiados.
Os mortos do supermercado virão puxar os pés daqueles que ousam dormir bem, ouvindo do
além o choro de fininho dos índios do vizinho. Aqueles que se
sentirem errados podem se entregar a um delegado nomeado e pagar em cestas básicas malhadas
pela limpeza judiciária de suas
consciências pesadas.
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