São Paulo, terça-feira, 10 de agosto de 2004

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FERNANDO BONASSI

Os mortos do supermercado

Os mortos do supermercado devem ter comido macarronada. Era domingo, era fácil, e o Paraguai dispõe dos tomates mais saborosos do mundo globalizado. Pouca gente sabe disso, é claro. E pelo desconhecimento geral deste, entre outros insumos, vivem mal e porcamente, chafurdando em terras griladas, fumando cigarros contrabandeados e desenvolvendo câncer nos intestinos feridos de frituras, farinhas duras e churrascos magros. Que aquela refeição de macarrão recém-passada, al dente, molhada de vermelho, fosse seu último desejo suculento e ardente, no entanto, não sabemos.
Os mortos daquele supermercado eram paraguaios, mas poderiam ser paulistas, portenhos, gaúchos, nortistas. Deixaram as aquisições de finados para esse domingo de agosto porque era a diversão comum que tinham. As elites sul-americanas sabem o gosto do que reservam ao lazer dos miseráveis (aliás, aqueles que afirmaram que os mortos do supermercado pertenciam à classe média, devem uma explicação dessa mistificação aos indigentes deste continente). Denúncias indicam que o dono do supermercado mandou trancar as portas em meio à confusão, por medo de perder o dinheiro suado das mãos dos desesperados.
Os mortos do supermercado não se preocupavam com terrorismo. Talvez o consumismo os provocasse. "Comprar, mesmo que pouco, deve ser um tesão", asseguravam os anúncios explosivos da praça de alimentação. Permaneceram encurralados em meio a gôndolas de sabão, material inflamável e o medo execrável de um proprietário que se transformou em assassino extraordinário. As vítimas não dispunham de aparatos defensivos, projetos imperiais e códigos laranja. Quanto às últimas, queriam apenas apalpá-las, cheirá-las, mordê-las, chupá-las...
A propósito da atitude do empresariado, agiriam diferente os latifundiários escravistas, os reis locais da mais-valia industrial e os operadores do hipermercado de nossa capital, ao verem chamas em seu circo escandaloso? Não fritariam os palhaços com o mesmo estardalhaço?
No fundo, o supermercado tinha razão, porque sabia que os mortos torrados vinham sendo depenados pelos mercados emergentes há tanto tempo que poderiam muito bem, coerentes e irados, saquear seu negócio fechado!
Os mortos do supermercado estavam fazendo as contas para ver o que poderiam levar. A maioria era honesta, ou trouxa, como queiram uns e outros mais ou menos socialistas para cima de suas massas cansadas e abatidas. As coisas deveriam bater no caixa, entre débitos, cheques e crediários, para o bem do locatário que comandava as fechaduras. É sempre assim nesses contratos. Os mortos incinerados pagaram à vista e à força muito antes de se perderem naquele comércio. Não perceberam, por exemplo, no instante em que entraram, que as portas abaixaram às suas costas como se fossem guilhotinas à procura de pescoços. Depois foi essa mesma lâmina que lhes esmagava a cara, deixando entrever a imensidão dos cortiços do lado de fora e a corrupção dos produtos expostos do lado de dentro. Estiveram a postos e prontos para morrer. Os mortos do supermercado são os cadáveres do encontro da volúpia de querer com o desejo de vender!
Os carros dos bombeiros e os demais equipamentos que acudiram os mortos do supermercado eram velhos e ultrapassados, com sapatos furados e mangueiras emendadas que faziam chafarizes, roubando a pressão necessária à salvação dos infelizes que agonizavam entre carrinhos prateados e ofertas mesquinhas.
Quem são esses "hermanos" tão ruins que estão piores do que nós, por mais incríveis que nos pareçam? Se "o melhor do Brasil é o brasileiro", o que podemos oferecer aos que mal ou bem exploramos num momento de desgraça?
Se fôssemos nós a lhes importar os fogões e geladeiras estaríamos numa fria diferente? Sobreviveriam eles à nossa roleta-russa e aos tiroteios cruzados nos ônibus lotados em busca de salários achatados?
Qual é a graça de mantermos mais essa ilha de fertilidade encruada em meio à mata úmida e pegajosa desse mercado incomum?
E esse espetáculo de crescimento econômico que não nos dá o prazer de sua presença, nem nos sai da moita rala da cabeça preocupada, condenando-nos ao fogo do inferno do eterno purgatório da esperança?
Que mais da metade tenha se saído morta e a outra parte, gravemente ferida, essa média se mantém também em nossas estatísticas.
Por falar nisso, o Ministério da Saúde do Banco Central do Mercosul informa: a prosperidade dos mortos do supermercado foi considerada inflacionária, ficando os mesmo sujeitos aos riscos do desafio à política de boa vizinhança e estabilidade dos condomínios fechados dos deputados governistas de ambos os lados.
Os mortos do supermercado, não se iludam, são os mortos dos mercados, dos hipermercados e até de mercadinhos, como alguns dos nossos. Uns morrem queimados no atacado das periferias esquecidas, outros no varejo dos vilarejos sitiados.
Os mortos do supermercado virão puxar os pés daqueles que ousam dormir bem, ouvindo do além o choro de fininho dos índios do vizinho. Aqueles que se sentirem errados podem se entregar a um delegado nomeado e pagar em cestas básicas malhadas pela limpeza judiciária de suas consciências pesadas.


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