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São Paulo, quarta-feira, 10 de setembro de 2003

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O CÉU QUE NOS PROTEGE

Divulgação
Wagner Moura em "O Caminho das Nuvens"



Vicente Amorim lança nesta sexta o longa "O Caminho das Nuvens", sobre o êxodo de uma família nordestina que tenta escapar da pobreza, indo para o Rio de Janeiro de bicicleta

Diretor traça paralelo entre seu filme e "Vidas Secas" (1964), de Nelson Pereira dos Santos, clássico nacional sobre os efeitos da miséria na população do Nordeste do país



SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Para Fabiano, a cama com estrado em que a mulher sonha deitar o corpo é um objetivo distante. O dinheiro não chega para comprar o móvel.
Para Romão, um salário mensal de R$ 1.000 seria a solução para o sustento da mulher e "dos meninos"; seis no total. Mas o desejo parece inalcançável a um adulto analfabeto.
A solução de ambos é uma só: pé na estrada, rumo ao sul.
Entre Fabiano -que o cineasta Nelson Pereira dos Santos transportou da obra literária de Graciliano Ramos (1892-1953) para o cinema, no clássico "Vidas Secas", filmado em 1963- e Romão -que o diretor Vicente Amorim tomou de empréstimo da realidade para realizar o ficcional "O Caminho das Nuvens", que estréia na próxima sexta- há 40 anos de intervalo, uma história do cinema brasileiro para contar e um registro espelhado das condições de vida na região mais pobre do país.
Os dois filmes têm produção assinada por Luiz Carlos Barreto. Ele mesmo um cearense que construiu, no Rio, carreira de 75 filmes produzidos e, com ela, o apelido de "coronel" do cinema brasileiro. Em "Vidas Secas", fez também a fotografia, considerada inaugural de um estilo brasileiro.
"Nunca houve uma preocupação explícita minha de fazer uma releitura de "Vidas Secas" do ponto de vista estilístico", afirma Amorim, 36. O diretor acha que o clássico de Nelson Pereira "é muito mais a tradução brasileira do neo-realismo e, portanto, mais naturalista" do que seu filme.
"Provavelmente, o que faz com que a linguagem de qualquer filme feito no Brasil hoje seja diferente dos filmes dos anos 60 é a existência da TV e todas as outras influências cinematográficas que cada um de nós absorveu", diz.
Em seu caso específico, "O Caminho das Nuvens" escancara citações a "Chinatown" (1974), de Roman Polanski, e a "Pixote" (1981), de Hector Babenco.
Tematicamente, a aproximação entre "Vidas Secas" e "O Caminho das Nuvens" tem não apenas pontos de contato, na opinião de Amorim -por serem ambos relatos do êxodo nordestino-, como também um elo: "Se o Brasil tivesse mudado o suficiente, o quanto Nelson Pereira provavelmente desejava, talvez "O Caminho das Nuvens" não existisse".
Mas se não mudou na raiz de seus problemas, o Nordeste tornou-se outro sob o aspecto cultural, na avaliação do diretor.
"Isso é o que é comum e, ao mesmo tempo, diferencia os dois filmes. Embora os problemas sociais não tenham sido resolvidos, a transformação cultural foi tão grande, que o sonho de uma cama com estrado de Fabiano passa a ser o de um emprego de R$ 1.000 para Romão. Ou seja, a miséria continua igual, mas as demandas da sociedade de consumo chegam ao Brasil inteiro pela televisão."
O diretor observa que, "não por acaso", assim como no filme dos anos 60, em seu longa a mulher é alfabetizada, e o marido, não.
"O Caminho das Nuvens" baseia sua trama no episódio real da decisão de uma família de migrar da Paraíba para o Rio de Janeiro, viajando de bicicleta.
Amorim e o roteirista David França Mendes conviveram com os emigrantes durante três meses.
"Tivemos a preocupação de fugir da tendência de estetizar não só o Nordeste, como a pobreza", diz o diretor. A intenção era evitar para o espectador "um distanciamento do assunto e, portanto, um apiedamento, uma paternalização em relação aos personagens".
Ao "respeitar os personagens, o que significa também expor suas contradições e seus defeitos", Amorim diz acreditar que se afasta também do risco a que um olhar paternalista e piedoso está fadado: o de "fazer um filme voyeurista, quase fascista".


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