São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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FERREIRA GULLAR

As mãos sujas


Um chefe de governo realmente íntegro seria o maior interessado em tudo esclarecer

AS DECLARAÇÕES de alguns artistas afirmando que a ética não interessa, que o que importa é o jogo do poder e que política não se faz sem sujar as mãos trouxe o tema da corrupção para o centro da campanha eleitoral, como tinha de ser. Não é que os candidatos devam se omitir na discussão dos problemas sociais, mas seria impossível excluir do debate os escândalos que abalaram o país durante quase todo o ano de 2005. O que ocorreu, então, não foi um episódio momentâneo, que encrespou por alguns dias o cenário político. Não, o escândalo durou meses, e o país inteiro assistiu, pela TV, aos depoimentos dos implicados nas falcatruas.
E o mais significativo de tudo isso é que nunca em toda a nossa história houve escândalo semelhante, envolvendo o pessoal mais próximo do presidente da República, como José Dirceu, ministro-chefe da Casa Civil; José Genoino, presidente do partido de Lula; Delúbio Soares, secretário de finanças, e Sílvio Pereira, secretário-geral do PT. Todos eles, além de ocupar os cargos que ocupavam, eram amigos do presidente, que com eles privava e com eles construiu o partido; proximidade maior do que essa só com mulher e filhos. Não obstante, Lula afirmou que havia sido traído, que de nada sabia, e tratou de afastar para longe de si, para longe do governo e do partido todos os implicados na bandalheira. Mas não os acusou, não os puniu, e, ainda, passado o susto, chamou-os de amigos e os desculpou, afirmando que "errar é humano".
Precisaria algo mais claro do que isso? Nenhuma pessoa que examine com isenção esses fatos acreditará na inocência de Lula. O próprio Lula, sob a pressão do escândalo, lançou mão do único argumento que lhe restava: o que fizemos todo mundo faz.
Essa é uma desculpa bem mais que esfarrapada, de que nunca poderia se valer um líder que ao longo de sua carreira empunhou a bandeira da ética na política. Mas, por incrível que pareça, a esta altura da campanha eleitoral, é o argumento de que Lula se vale em seu novo programa de governo. Afirma, no documento, que falta à oposição "autoridade moral e credibilidade política" para acusá-lo de corrupto.É o mesmo que dizer "se sou corrupto, eles também o são", como se tal resposta o tornasse menos culpado.
Leio isso nos jornais e fico pasmo. A desconsideração pela ética chegou a tal ponto que o presidente da República não percebe que, quando se trata de sua respeitabilidade, ele deve satisfações não ao PSDB, não a Geraldo Alckmin ou a Fernando Henrique, mas à opinião pública.
Quem está a exigir dele uma atitude de efetivo repúdio aos corruptos são os homens de bem e a sua própria condição de chefe de Estado. Em vez disso, o seu partido inscreve como candidatos para deputado federal os mesmos dirigentes envolvidos no escândalo do mensalão e que, para não serem cassados, renunciaram ao mandato; não há maior confissão de culpa que essa.
Não obstante, o presidente faz que não sabe e sobe no palanque ao lado deles, como a desafiar afrontosamente a moralidade pública. O que importa é ter voto, como disse sem rodeios seu assessor especial, e para consegui-lo vale tudo. É, noutras palavras, o mesmo que disseram os artistas lulistas.
Lula, como chefe de Estado, deveria, por todos os meios possíveis, procurar demonstrar ao país que é digno do cargo que ocupa, que não compactuou nem compactua com a corrupção. Um chefe de governo realmente íntegro e cioso de sua dignidade seria o maior interessado em tudo esclarecer, e é claro que Lula gostaria de fazê-lo; se não o faz, é porque não pode. Em vez disso, desde que estourou o escândalo, esforçou-se para ignorá-lo e se distanciar dos corruptos, seus amigos da véspera. Chegou a afirmar que era tudo invenção da imprensa.
Agora, me diga o leitor, isso é atitude de um presidente da República? Será que estamos anestesiados ou dopados por alguma droga que não nos deixa ver esse outro escândalo? O escândalo do presidente que não se preocupa em comprovar sua honestidade e continua a enganar, sobretudo, os que ainda confiam nele. Lula nunca foi transparente, mas esperto sempre foi. Sabe que não pode convencer nem mesmo seus eleitores de que não teve nada a ver com o mensalão e de nada sabia. Se continua a afirmá-lo, é para confortar-lhes a consciência, assegurar-se de seus votos e, ao mesmo tempo, oferecer-lhes desculpas e argumentos.
Eles precisam disso para justificar o injustificável, nem que seja alegando que política só se faz mesmo sujando as mãos de merda. Mas não precisava aplaudir, precisava?


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