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GASTRONOMIA
Santos antigos, motos modernas
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Cheguei cedo à igreja, a tempo de visitar os santos nos
seus altares, peanhas, oratórios,
vitrais, caixões de vidro. As velas
tremelicavam sobre a Madona no
altar-mor, uma figura soberana,
saias enormes, anáguas, refolhos,
de olhos baixos sobre o Menino.
Santos de madeira, inteiramente
marrons, santos cristalizados em
poses e tons pastel, santos de hábitos, de mantas. Um deles, uma
figura menor que as outras, baixo,
de pernas curtas e uma pelerine
bordada sobre o corpo nu. Nem
tive tempo de me intrigar. Mais
um passo, outro altar e nele uma
motocicleta espancando de nova.
Sempre me aborrece a tristeza
das igrejas, sempre as quis alegres,
com seus sinos, falando de amor e
risos, mas teimam em chorar,
sombrias, não tem jeito.
E lá estava aquela moto, feliz,
brilhando em vermelho e prata.
Não deu tempo de pensar, só percebia o contraste gritante, aquela
coisa a vibrar, cheia de vida, uma
moto moderna, prestes a saltar, e
os santos quietos e escondidos no
frescor dos altares cinzentos.
Imediatamente me dei conta de
que todos, absolutamente todos
os santos se vestiam fora da moda, roupa de santo é definitivamente fora de moda. Uma coisa
muito antiga. Já não se fazem santos como antigamente? Por que
não um rapaz dos 70, calça boca-de-sino e bolsa? Uma santinha de
tatuagem no pescoço, ora, pois
não as há de setas na testa, de buquês nas mãos?
A motocicleta (amarrada com
correntes, não fosse um paroquiano lançar mão dela), de tão
agressiva e ousada, me dera um
olhar novo sobre as imagens, mas
sosseguei. Santo é assim mesmo,
todo o mundo já se acostumou,
saberíamos rezar para uma santa
de pretinho básico e botas?
Pois foi pensar pela primeira vez
no assunto e, como acontece sempre, ele começou a pipocar nos
dias seguintes, na TV, nos jornais,
nas revistas, na internet. (Da motocicleta não soube mais nada,
com certeza havia sido doada ao
padre para rifa ou agradecimento
aos céus por ter sido evitado um
desastre, um voto, talvez?)
No dia das eleições, foi santificado Escrivá, de óculos e cara normal de todo dia, na internet achei
beatos, pios, santos, na moda...
Ou quase. Carlos Santiago, de cabelo ondulado e gravata de Miami. Artemide Zatti, um galã dos
40, bigodinho à Clark Gable, sorriso de Barrymore. E Gaudí, o arquiteto, tudo em cima, vai ser santo logo, muito digno e bonito, cabelos, barbas, bigodes muito
brancos. E um casal, os Quattrocchi, em nada diferentes a milhares
de outros casais, terno e tailleur.
E no jornal a promessa de uma
santa brasileira, dizem que Albertina será a próxima. É a mais linda
de todas, a motocicleta das santas,
Kim Bassinger com lábios de Jolie. Aventalzinho de escola, com
babados. Vem de Santa Catarina.
E o que tem isto com uma crônica de gastronomia? Tem que é
bom ir se acostumando que santo
de agora em diante é gente como a
gente. Como os cozinheiros, chefs
de cozinha, auxiliares, maîtres,
garçons, escrevinhadores de jornal, donas-de-casa, é só cumprir
bem as tarefas que Deus manda,
sem nenhum exagero, sem ranger
de dentes, sem cilícios nem visões,
com a roupeta de todo dia, engomadinha com certeza, que há, há
sim, possibilidade de atingirmos
todos a santidade.
Para variar, a poeta já sabia.
"(...) É dela que nasce a luz /De
natureza velada /É seu próprio
gosto /Em ter uma família /Amar
a aprazível rotina /Ela não sabe
que sabe /A rotina perfeita é
Deus...." Adélia Prado.
E-mail:
ninahort@uol.com.br
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