São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 2002

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GASTRONOMIA

Santos antigos, motos modernas

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Cheguei cedo à igreja, a tempo de visitar os santos nos seus altares, peanhas, oratórios, vitrais, caixões de vidro. As velas tremelicavam sobre a Madona no altar-mor, uma figura soberana, saias enormes, anáguas, refolhos, de olhos baixos sobre o Menino. Santos de madeira, inteiramente marrons, santos cristalizados em poses e tons pastel, santos de hábitos, de mantas. Um deles, uma figura menor que as outras, baixo, de pernas curtas e uma pelerine bordada sobre o corpo nu. Nem tive tempo de me intrigar. Mais um passo, outro altar e nele uma motocicleta espancando de nova.
Sempre me aborrece a tristeza das igrejas, sempre as quis alegres, com seus sinos, falando de amor e risos, mas teimam em chorar, sombrias, não tem jeito.
E lá estava aquela moto, feliz, brilhando em vermelho e prata. Não deu tempo de pensar, só percebia o contraste gritante, aquela coisa a vibrar, cheia de vida, uma moto moderna, prestes a saltar, e os santos quietos e escondidos no frescor dos altares cinzentos.
Imediatamente me dei conta de que todos, absolutamente todos os santos se vestiam fora da moda, roupa de santo é definitivamente fora de moda. Uma coisa muito antiga. Já não se fazem santos como antigamente? Por que não um rapaz dos 70, calça boca-de-sino e bolsa? Uma santinha de tatuagem no pescoço, ora, pois não as há de setas na testa, de buquês nas mãos?
A motocicleta (amarrada com correntes, não fosse um paroquiano lançar mão dela), de tão agressiva e ousada, me dera um olhar novo sobre as imagens, mas sosseguei. Santo é assim mesmo, todo o mundo já se acostumou, saberíamos rezar para uma santa de pretinho básico e botas?
Pois foi pensar pela primeira vez no assunto e, como acontece sempre, ele começou a pipocar nos dias seguintes, na TV, nos jornais, nas revistas, na internet. (Da motocicleta não soube mais nada, com certeza havia sido doada ao padre para rifa ou agradecimento aos céus por ter sido evitado um desastre, um voto, talvez?)
No dia das eleições, foi santificado Escrivá, de óculos e cara normal de todo dia, na internet achei beatos, pios, santos, na moda... Ou quase. Carlos Santiago, de cabelo ondulado e gravata de Miami. Artemide Zatti, um galã dos 40, bigodinho à Clark Gable, sorriso de Barrymore. E Gaudí, o arquiteto, tudo em cima, vai ser santo logo, muito digno e bonito, cabelos, barbas, bigodes muito brancos. E um casal, os Quattrocchi, em nada diferentes a milhares de outros casais, terno e tailleur.
E no jornal a promessa de uma santa brasileira, dizem que Albertina será a próxima. É a mais linda de todas, a motocicleta das santas, Kim Bassinger com lábios de Jolie. Aventalzinho de escola, com babados. Vem de Santa Catarina.
E o que tem isto com uma crônica de gastronomia? Tem que é bom ir se acostumando que santo de agora em diante é gente como a gente. Como os cozinheiros, chefs de cozinha, auxiliares, maîtres, garçons, escrevinhadores de jornal, donas-de-casa, é só cumprir bem as tarefas que Deus manda, sem nenhum exagero, sem ranger de dentes, sem cilícios nem visões, com a roupeta de todo dia, engomadinha com certeza, que há, há sim, possibilidade de atingirmos todos a santidade.
Para variar, a poeta já sabia.
"(...) É dela que nasce a luz /De natureza velada /É seu próprio gosto /Em ter uma família /Amar a aprazível rotina /Ela não sabe que sabe /A rotina perfeita é Deus...." Adélia Prado.

E-mail:
ninahort@uol.com.br

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