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São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Um vagabundo no século 20

Para buscarmos a mais remota das fontes (ou origens) chaplinianas, já desprezando seus inspiradores mais próximos, como Dickens ou Gogol, desprezando mesmo o maior deles, Shakespeare, ou talvez o mais frequente, Cervantes, chegaremos a Homero.
Cheira à mais sovada cretinice intelectual o atribuir-se aos gregos o monopólio ou a paternidade do pensamento ocidental, a fonte única ou primeira de todas as manifestações culturais, tanto na arte como no pensamento. Cretino ou não, o paralelo Ulisses-Carlitos se impõe, ainda que tomemos este último como o herói de uma odisséia às avessas. O peregrino da Antiguidade tem inúmeros pontos de contato humano e aventureiro com o peregrino do século 20. Um e outro podem ser levados à conta e à categoria de personagens mitológicos, ou seja, no sentido de geradores de mito.
Carlitos é um Ulisses sem glória, digamos, mais desesperado porque desprovido de um sentido. A peregrinação do herói homérico tinha um objetivo: tendia a uma evidente felicidade da qual já havia gozado parcelas. O seu retorno a Ítaca era-lhe um sonho lícito, uma ambição e uma luta duplamente lógicas. Penélope fiava e Ulisses se fiava nela: só isso daria uma motivação -ou uma justificação à luta e ao retorno de Ulisses.
Carlitos, ao contrário, não tem o que fiar e não se fia em ninguém. Vagabundo sem pátria, sem família, sem amigos, sem ideais, aspira à única felicidade que lhe é possível: o abrigo para mais uma noite, um prato de comida, um mínimo de segurança pessoal e de espaço físico para sobreviver num universo imenso e palmilhado sem sucesso pelas suas botas cobertas de pó, cujas pontas indicam, ao mesmo tempo, dois rumos antagônicos e vazios.
Sua arte é feroz: escorrendo de sucessivos episódios de um só e único filme, no qual o homenzinho fraco, ridículo, apegado à vida, ao amor, à dignidade, vive, sofre, suporta todas as desgraças e equívocos que podem ocorrer a um homem, seja ele marquês ou funileiro, carregador de pianos, policial ou bombeiro... Padece de sucessivos e inconsumidos finais, nos quais parte mais uma vez através de estradas que superam horizontes para, logo após, surgir outra vez do pó e da luta humana, em mais um degrau de absurda escada que não liga parte nenhuma a nenhuma outra parte, semelhante àquelas escadas rolantes de suas primeiras bobinas da Keystone: desciam quando ele precisava subir e subiam quando ele precisava descer.
É comum ao artista denunciar. De certa forma, todas as obras de arte denunciam alguma coisa. Mas, em geral, a denúncia torna-se, de alguma forma, cúmplice da própria denúncia. A violência, por exemplo, denunciada violentamente. A intolerância denunciada intolerantemente.
Em Chaplin, a denúncia é mais uma revolta, sem cumplicidade possível. Ele não julga: condena a seu modo. George Sadoul, o mais exaltado dos biógrafos de Chaplin, refere-se ao cenário, por assim dizer, único de todos os filmes de Chaplin: os casebres de Cottington Street, as casas escurecidas de Kennington, aquela paisagem de tijolo e ferro de Lambeth. E acrescenta: "Seus cenários denunciariam com raiva a miséria e a impotente resignação de sua infância". Aquela infância torturada pela orfandade, pela demência da mãe, pela fome, pelo frio. Aquela infância à qual Chaplin ficaria obstinadamente fiel.
Homem eternamente em fuga, o seu personagem. Fuga diante de um mundo que insiste em negar-lhe os meios para a fuga real. Se são trágicos os motivos pelos quais procura fugir, mais trágica em si mesma é essa impossibilidade de uma fuga integral. As engrenagens de uma sociedade endurecida no inumanismo trituram e despedaçam o fraco homenzinho que insiste em não morrer, que insiste em manter, intactas, a dignidade e a vida. É evidente que, em se tratando de um cômico, os meios que emprega são, em geral, cômicos, mas de uma comicidade que não esconde nunca o seu lado amargo, dolorosamente desesperado: o sonho de "Vida de Cachorro", por exemplo. Cão e vagabundo sonham ao mesmo tempo e, o que é mais cruel, os dois sonhos são iguais.
Foi a partir de "O Vagabundo" que Chaplin passou a trabalhar "em equipe com a realidade", segundo a clássica afirmação de Eisenstein. Émile Zola foi acusado de crime igual quando procurou subordinar a ficção à realidade imediata que o circundava. Em "O Vagabundo", o ébrio, o grosseiro e o sensual de "Carlitos Banca o Tirano" cede lugar ao futuro moralista que se completaria em "Rua da Paz": "O Amor é ajudado pela Força. A doçura do perdão traz a esperança e a paz" foi a epígrafe que o próprio Chaplin escreveu para explicar a sua primeira parábola social.
Um dos truques geniais de Chaplin é que ele se diverte e diverte os outros repetindo aquela cena dos atores do "Hamlet": a reconstituição do crime diante dos assassinos. Ele reconstitui, diante de cada assassino, a todos nós o nosso próprio crime. Saímos dos filmes de Chaplin com a consciência mais ou menos pesada de que, em algum lugar, em algum tempo, por algum motivo, cometemos um crime horrendo, de cuja expiação somos impotentes.


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