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CARLOS HEITOR CONY
Um vagabundo no século 20
Para buscarmos a mais remota das fontes (ou origens)
chaplinianas, já desprezando seus
inspiradores mais próximos, como Dickens ou Gogol, desprezando mesmo o maior deles, Shakespeare, ou talvez o mais frequente,
Cervantes, chegaremos a Homero.
Cheira à mais sovada cretinice
intelectual o atribuir-se aos gregos o monopólio ou a paternidade do pensamento ocidental, a
fonte única ou primeira de todas
as manifestações culturais, tanto
na arte como no pensamento.
Cretino ou não, o paralelo Ulisses-Carlitos se impõe, ainda que
tomemos este último como o herói de uma odisséia às avessas. O
peregrino da Antiguidade tem
inúmeros pontos de contato humano e aventureiro com o peregrino do século 20. Um e outro podem ser levados à conta e à categoria de personagens mitológicos,
ou seja, no sentido de geradores
de mito.
Carlitos é um Ulisses sem glória,
digamos, mais desesperado porque desprovido de um sentido. A
peregrinação do herói homérico
tinha um objetivo: tendia a uma
evidente felicidade da qual já havia gozado parcelas. O seu retorno a Ítaca era-lhe um sonho lícito,
uma ambição e uma luta duplamente lógicas. Penélope fiava e
Ulisses se fiava nela: só isso daria
uma motivação -ou uma justificação à luta e ao retorno de Ulisses.
Carlitos, ao contrário, não tem
o que fiar e não se fia em ninguém. Vagabundo sem pátria,
sem família, sem amigos, sem
ideais, aspira à única felicidade
que lhe é possível: o abrigo para
mais uma noite, um prato de comida, um mínimo de segurança
pessoal e de espaço físico para sobreviver num universo imenso e
palmilhado sem sucesso pelas
suas botas cobertas de pó, cujas
pontas indicam, ao mesmo tempo, dois rumos antagônicos e vazios.
Sua arte é feroz: escorrendo de
sucessivos episódios de um só e
único filme, no qual o homenzinho fraco, ridículo, apegado à vida, ao amor, à dignidade, vive,
sofre, suporta todas as desgraças e
equívocos que podem ocorrer a
um homem, seja ele marquês ou
funileiro, carregador de pianos,
policial ou bombeiro... Padece de
sucessivos e inconsumidos finais,
nos quais parte mais uma vez
através de estradas que superam
horizontes para, logo após, surgir
outra vez do pó e da luta humana, em mais um degrau de absurda escada que não liga parte nenhuma a nenhuma outra parte,
semelhante àquelas escadas rolantes de suas primeiras bobinas
da Keystone: desciam quando ele
precisava subir e subiam quando
ele precisava descer.
É comum ao artista denunciar.
De certa forma, todas as obras de
arte denunciam alguma coisa.
Mas, em geral, a denúncia torna-se, de alguma forma, cúmplice da
própria denúncia. A violência,
por exemplo, denunciada violentamente. A intolerância denunciada intolerantemente.
Em Chaplin, a denúncia é mais
uma revolta, sem cumplicidade
possível. Ele não julga: condena a
seu modo. George Sadoul, o mais
exaltado dos biógrafos de Chaplin, refere-se ao cenário, por assim dizer, único de todos os filmes
de Chaplin: os casebres de Cottington Street, as casas escurecidas de Kennington, aquela paisagem de tijolo e ferro de Lambeth.
E acrescenta: "Seus cenários denunciariam com raiva a miséria e
a impotente resignação de sua infância". Aquela infância torturada pela orfandade, pela demência
da mãe, pela fome, pelo frio.
Aquela infância à qual Chaplin
ficaria obstinadamente fiel.
Homem eternamente em fuga,
o seu personagem. Fuga diante de
um mundo que insiste em negar-lhe os meios para a fuga real. Se
são trágicos os motivos pelos
quais procura fugir, mais trágica
em si mesma é essa impossibilidade de uma fuga integral. As engrenagens de uma sociedade endurecida no inumanismo trituram e despedaçam o fraco homenzinho que insiste em não
morrer, que insiste em manter,
intactas, a dignidade e a vida. É
evidente que, em se tratando de
um cômico, os meios que emprega
são, em geral, cômicos, mas de
uma comicidade que não esconde
nunca o seu lado amargo, dolorosamente desesperado: o sonho de
"Vida de Cachorro", por exemplo.
Cão e vagabundo sonham ao
mesmo tempo e, o que é mais
cruel, os dois sonhos são iguais.
Foi a partir de "O Vagabundo"
que Chaplin passou a trabalhar
"em equipe com a realidade", segundo a clássica afirmação de Eisenstein. Émile Zola foi acusado
de crime igual quando procurou
subordinar a ficção à realidade
imediata que o circundava. Em
"O Vagabundo", o ébrio, o grosseiro e o sensual de "Carlitos Banca o Tirano" cede lugar ao futuro
moralista que se completaria em
"Rua da Paz": "O Amor é ajudado pela Força. A doçura do perdão traz a esperança e a paz" foi a
epígrafe que o próprio Chaplin escreveu para explicar a sua primeira parábola social.
Um dos truques geniais de Chaplin é que ele se diverte e diverte
os outros repetindo aquela cena
dos atores do "Hamlet": a reconstituição do crime diante dos assassinos. Ele reconstitui, diante de
cada assassino, a todos nós o nosso próprio crime. Saímos dos filmes de Chaplin com a consciência
mais ou menos pesada de que, em
algum lugar, em algum tempo,
por algum motivo, cometemos
um crime horrendo, de cuja expiação somos impotentes.
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