São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998

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POESIA
Tradução se perde na riqueza de Keats

especial para a Folha

A Iluminuras, a mais sofisticada editora de poesia do Brasil nos anos 90, oferece agora ao leitor uma pequena antologia da obra de John Keats, traduzida por Alberto Marsicano e John Milton.
Keats, nascido em Londres em 1795 e morto, de tuberculose, em 1821, pertence ao que historiadores da literatura chamam de segunda geração de românticos ingleses.
O Romantismo inglês se iniciou oficialmente em 1800, com o prefácio de William Wordsworth à reedição de "Lyrical Ballads", e, segundo Jorge de Sena -um dos maiores intelectuais portugueses deste século ("A Literatura Inglesa", Cultrix, 1963)-, se extinguiu cerca de 30 anos depois, devido à morte de seus principais protagonistas: entre eles, Samuel Taylor Coleridge, Percy Bysshe Shelley, Lord Byron e William Blake.
Autor de um dos mais célebres versos da literatura universal ("A thing of beauty is a joy for ever"), Keats não foi uma figura pública e sua poesia não se constitui em um individualismo extremado.
No dizer de Sena, fez de sua poesia uma "obra de arte", na qual idéias, amarguras e reflexões se materializam em linguagem -que de início foi atacada pelos conservadores, que lhe censuraram o livro de estréia "Poems", de 1817, e o poema "Endymion", de 1818.
Keats só ocupou o merecido lugar de grande poeta a partir da segunda metade do século passado.
A coletânea do músico erudito e poeta Marsicano e do professor John Milton reproduz muitos de seus principais poemas, entre eles as odes "Ao Rouxinol", "A um Vaso Grego", "Ao Outono" e "The Eve of St. Agnes". Milton esclarece, em nota, que eles optaram "por não usar rimas na tradução, pois a obrigação de rimar acabaria por nos afastar do profundo sentido filosófico que existe por trás destes poemas". Assim, os próprios tradutores explicam que não tentaram enfrentar a extrema riqueza de sons da poesia de Keats, que, ao contrário do que afirmam, se me permitem, não é só logopaica, mas filosófico-melopaica: sua trama de sons e sentidos não pode ser desfeita, sob pena de desfiguração.
Embora decente, sem erros e com alguns lances bem-sucedidos de recriação dos originais em português, as traduções se inscrevem no rol da literalidade, funcionando como um guia para a leitura dos textos em inglês -estes sim brilhantes. Um exemplo de momento mais pleno dos tradutores: "Leia-me a prece, Musa, e em voz alta / No cimo do Nevis, velado na névoa" ("Written upon the top of the Nevis"). Exemplo de momento literal: "Gato, já está em idade avançada, / Quantos camundongos e ratos em sua vida já comeu?", que, na prática desfigura o raciocínio sonoro de "Cat! Who hast pass'd thy great climacteric,/ How many mice and rats hast in thy days / Destroy'd?". Sutilezas essenciais como a palavra "mice" anagramatizada em "climacteric" foram perdidas, entre tantas outras.
Esta opção pela literalidade (o que não é de todo incorreta) talvez também explicite a dificuldade "ontológica" de traduzir Keats e, em amplo sentido, de traduzir poesia -ela mesma uma vez definida por Robert Frost como "aquilo que se perde na tradução".
Por ora, os dois melhores exemplares de Keats em português são de reautoria de Augusto de Campos -as odes "Ao Rouxinol" e "Sobre uma Urna Negra".
Compare-se "Ode ao Rouxinol": "Meu peito dói; um sono insano sobre mim / Pesa, como se eu me tivesse intoxicado / De ópio ou veneno que eu sorvesse até o fim", de Augusto, com "Dói-me o coração, e um torpor letárgico / Fere meu sentido, como se tomasse cicuta / ou ingerisse até o fim algum ópio".
Estas pequenas ressalvas, não subtraem a importância do lançamento e do trabalho de fôlego de Marsicano e Milton, que deliberadamente procuraram explorar só um dos lados da universal e imprescindível poesia de Keats. (RB)
˛
Livro: Nas Invisíveis Asas da Poesia
Autor: John Keats
Tradutores: Alberto Marsicano e John Milton
Lançamento: Iluminuras
Quanto: R$ 16 (96 págs.)




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