São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998

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Prêmios, escolhas: Saramago e o nefasto

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

˛ Viver é escolher, escrever é escolher. O problema não é a fabulação ou a prosa, embora esse ofício de produzir fluência seja dos mais exigentes.
O problema é desbastar a pilha de livros, recortes, anotações que se acumulam na mesa e se acotovelam na alma ao longo da semana oferecendo-se para compor o xarope de essências do qual resultará a xaropada final.
Escolher, verbo rico, tem a ver com colher (do latim "colligere"), coletar. Da escolha infeliz, resulta encolher. Bem sucedida, dá acolher, agasalhar. Ou recolher, juntar, aproximar.
Escolher sugere a imagem do campônio separando o joio do trigo, o marceneiro selecionando a madeira durável, o sapateiro a procurar o couro mais flexível. Envolve todos os sentidos e capacidades. No artesanato de existir, escolher tem algo de épico e delicado. Primordial.
Opção feita, o resto segue prazeroso. Satisfação só se produz quando se trabalha satisfeito. Mesmo com tema áspero.
Ultimamente, ocupo-me com as sonatas para piano de Haydn, o pai espiritual de Mozart. Mestre e discípulo são exemplo do inefável encadeamento entre o bem-estar que sentiram há mais de 200 anos e aquele que agora produzem em nós. As escolhas de hoje fluíram com facilidade, razão pela qual o resto corre duplamente prazenteiro. Começou quando li a transcrição do embate televisivo entre Marta e Maluf.
Melífluo e ardiloso, o eterno candidato a qualquer cargo vago tentava envolver essa que foi a maior surpresa da eleição de domingo, hoje figura nacional, quiçá peça importante no xadrez de 2002.
Marta Suplicy soube diferenciar, escolher: foi dura com Covas, mas etiquetou Paulo Maluf com o mais arrasador trissílabo já aparecido no vocabulário político dos últimos tempos.
Em Roma, seria "nefastu", funesto, sinistro, que causa desgraças, de mau agouro. Psicóloga, Marta conhece o valor da palavra, forneceu o vocábulo- chave para o retrato-radiografia de Maluf: nefasto. Definição definitiva da combinação de Pinóquio e Münchhausen, personificação do engodo e perversidade.
Nos mesmos jornais, a indicação de que PT e PSDB caminharão juntos no segundo turno no Distrito Federal e nas Minas Gerais.
Se confirmada a tendência, fica evidente que os envolvidos nessa parceria, as duplas Cristóvão Buarque-Patrus Ananias pelo PT e Eduardo Azeredo-José Roberto Arruda pelo PSDB, também souberam escolher -distinguir, separar, avaliar.
E enquanto Maluf contava às rádios a lorota do dia -que FHC votara nele no domingo- o presidente da República, na noite de quarta-feira, declarava de forma cabal e inequívoca ao repórter William Bonner, da Rede Globo, que votou e votará novamente em Mário Covas.
Claro que os marqueteiros da escola Goebbels, que acompanham Maluf 24 horas por dia controlando o que pensa e diz, tentarão disfarçar, minimizar e distorcer a escolha de Fernando Henrique Cardoso.
Na guerra do bem contra o mal que em São Paulo delineia- se com tanta nitidez, o presidente não poderia deixar de manifestar-se. Apesar da "realpolitik" e a despeito dos votos do PPB no Congresso para a aprovação das reformas e do imperioso acerto fiscal.
Convém lembrar que, em 1985, no último pleito indireto, Antônio Carlos Magalhães, um dos expoentes da Arena, também soube escolher -foi decisivo na vitória de Tancredo Neves contra Paulo Maluf, do seu próprio partido.
Mesmo com o céu plúmbeo desta primavera de vento e granizo, a manhã começou risonha: José Saramago foi escolhido, eleito, premiado para receber o Nobel de Literatura.
Uma das homenagens mais justas e mais tocantes a este pequeno-grande país chamado Portugal e ao imenso continente que é a língua-cultura portuguesa. Do qual fazemos parte, ao qual damos escala e dimensão, mas para o qual tão pouco contribuímos. Com as necessárias e honrosas exceções.
Vivi naquela terra mais de 10% da minha vida, com a noção exata de que era sumamente feliz. Sabia que deveria voltar ao penates, casa paterna, terra natal. Não estou arrependido por ter ido, nem infeliz por ter voltado.
Antes de viajar, Saramago já era uma referência (embora a primeira edição brasileira de "Memorial do Convento", pela Difel, com ortografia brasileira, tenha sido um desastre).
Quando regressei, Saramago era um marco. Não apenas do idioma, da escrita, mas de uma maneira de ser, grave e profunda, muito próxima de nós e que, no entanto, recusamos. Pior, desprezamos.
Estive em sua casa em Lisboa: um andar (como lá diz-se), na rua dos Ferreiros à Estrela (isto é, no bairro da Estrela, uma das crases mais graciosas do idioma).
Jantamos a convite de Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, no "Farta Brutos", tasca refinada, tipo cave, parte baixa do Bairro Alto onde o historiador Evaldo Cabral de Mello, então cônsul-geral, tinha mesa cativa ao almoço.
Convidado por Jaime Martins para participar do "Roda Viva" com Saramago, há quase um ano, tive a ousadia de declinar, preferia ouvi-lo.
Devoção, veneração, respeito, recato, sei lá, acho que a verdadeira admiração impõe distância (o mesmo aconteceu nos anos 70, em Nova York, jamais consegui aceitar o convite pessoal de Isaac Bashevis Singer -muito antes do Nobel- para tomar chá em seu apartamento).
O depoimento na TV Cultura foi um deleite, inesquecível. Se pudesse transcreveria o texto que me inspirou ("Saramago, Pessimismo e Xampu", Ilustrada, 22/11/97): "... propõe o ceticismo, sugere a dúvida, serenamente oferece um freio às libações simplistas...descrente que acredita. Aquelas sobrancelhas bastas e curvas parecem indicar perplexidade e indagação... Ao escolher Kafka, Pessoa e Borges como seus emblemas literários dá uma sonora banana e passa ao largo da etiquetagem ideológica (os dois últimos tidos como reacionários)..."
Saramago é assim não porque tenha 76 anos, seja um autor de sucesso, profundo, manso, europeu, ibérico, socialista. É assim porque é um ser humano atento, gente como a gente -sabe julgar, discernir, escolher.



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