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Prêmios, escolhas: Saramago e o nefasto
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
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Viver é escolher, escrever é escolher. O problema não é a fabulação ou a prosa, embora esse ofício de produzir fluência
seja dos mais exigentes.
O problema é desbastar a pilha de livros, recortes, anotações que se acumulam na mesa
e se acotovelam na alma ao
longo da semana oferecendo-se
para compor o xarope de essências do qual resultará a xaropada final.
Escolher, verbo rico, tem a ver
com colher (do latim "colligere"), coletar. Da escolha infeliz,
resulta encolher. Bem sucedida,
dá acolher, agasalhar. Ou recolher, juntar, aproximar.
Escolher sugere a imagem do
campônio separando o joio do
trigo, o marceneiro selecionando a madeira durável, o sapateiro a procurar o couro mais
flexível. Envolve todos os sentidos e capacidades. No artesanato de existir, escolher tem algo de épico e delicado. Primordial.
Opção feita, o resto segue prazeroso. Satisfação só se produz
quando se trabalha satisfeito.
Mesmo com tema áspero.
Ultimamente, ocupo-me com
as sonatas para piano de
Haydn, o pai espiritual de Mozart. Mestre e discípulo são
exemplo do inefável encadeamento entre o bem-estar que
sentiram há mais de 200 anos e
aquele que agora produzem em
nós. As escolhas de hoje fluíram
com facilidade, razão pela qual
o resto corre duplamente prazenteiro. Começou quando li a
transcrição do embate televisivo entre Marta e Maluf.
Melífluo e ardiloso, o eterno
candidato a qualquer cargo vago tentava envolver essa que foi
a maior surpresa da eleição de
domingo, hoje figura nacional,
quiçá peça importante no xadrez de 2002.
Marta Suplicy soube diferenciar, escolher: foi dura com Covas, mas etiquetou Paulo Maluf
com o mais arrasador trissílabo
já aparecido no vocabulário
político dos últimos tempos.
Em Roma, seria "nefastu", funesto, sinistro, que causa desgraças, de mau agouro. Psicóloga, Marta conhece o valor da
palavra, forneceu o vocábulo-
chave para o retrato-radiografia de Maluf: nefasto. Definição
definitiva da combinação de
Pinóquio e Münchhausen, personificação do engodo e perversidade.
Nos mesmos jornais, a indicação de que PT e PSDB caminharão juntos no segundo turno no
Distrito Federal e nas Minas
Gerais.
Se confirmada a tendência, fica evidente que os envolvidos
nessa parceria, as duplas Cristóvão Buarque-Patrus Ananias
pelo PT e Eduardo Azeredo-José Roberto Arruda pelo PSDB,
também souberam escolher
-distinguir, separar, avaliar.
E enquanto Maluf contava às
rádios a lorota do dia -que
FHC votara nele no domingo-
o presidente da República, na
noite de quarta-feira, declarava de forma cabal e inequívoca
ao repórter William Bonner, da
Rede Globo, que votou e votará
novamente em Mário Covas.
Claro que os marqueteiros da
escola Goebbels, que acompanham Maluf 24 horas por dia
controlando o que pensa e diz,
tentarão disfarçar, minimizar e
distorcer a escolha de Fernando
Henrique Cardoso.
Na guerra do bem contra o
mal que em São Paulo delineia-
se com tanta nitidez, o presidente não poderia deixar de
manifestar-se. Apesar da "realpolitik" e a despeito dos votos
do PPB no Congresso para a
aprovação das reformas e do
imperioso acerto fiscal.
Convém lembrar que, em
1985, no último pleito indireto,
Antônio Carlos Magalhães, um
dos expoentes da Arena, também soube escolher -foi decisivo na vitória de Tancredo Neves contra Paulo Maluf, do seu
próprio partido.
Mesmo com o céu plúmbeo
desta primavera de vento e granizo, a manhã começou risonha: José Saramago foi escolhido, eleito, premiado para receber o Nobel de Literatura.
Uma das homenagens mais
justas e mais tocantes a este pequeno-grande país chamado
Portugal e ao imenso continente que é a língua-cultura portuguesa. Do qual fazemos parte,
ao qual damos escala e dimensão, mas para o qual tão pouco
contribuímos. Com as necessárias e honrosas exceções.
Vivi naquela terra mais de
10% da minha vida, com a noção exata de que era sumamente feliz. Sabia que deveria voltar ao penates, casa paterna,
terra natal. Não estou arrependido por ter ido, nem infeliz por
ter voltado.
Antes de viajar, Saramago já
era uma referência (embora a
primeira edição brasileira de
"Memorial do Convento", pela
Difel, com ortografia brasileira,
tenha sido um desastre).
Quando regressei, Saramago
era um marco. Não apenas do
idioma, da escrita, mas de uma
maneira de ser, grave e profunda, muito próxima de nós e que,
no entanto, recusamos. Pior,
desprezamos.
Estive em sua casa em Lisboa:
um andar (como lá diz-se), na
rua dos Ferreiros à Estrela (isto
é, no bairro da Estrela, uma das
crases mais graciosas do idioma).
Jantamos a convite de Luiz
Schwarcz, da Companhia das
Letras, no "Farta Brutos", tasca
refinada, tipo cave, parte baixa
do Bairro Alto onde o historiador Evaldo Cabral de Mello, então cônsul-geral, tinha mesa
cativa ao almoço.
Convidado por Jaime Martins
para participar do "Roda Viva"
com Saramago, há quase um
ano, tive a ousadia de declinar,
preferia ouvi-lo.
Devoção, veneração, respeito,
recato, sei lá, acho que a verdadeira admiração impõe distância (o mesmo aconteceu nos
anos 70, em Nova York, jamais
consegui aceitar o convite pessoal de Isaac Bashevis Singer
-muito antes do Nobel- para
tomar chá em seu apartamento).
O depoimento na TV Cultura
foi um deleite, inesquecível. Se
pudesse transcreveria o texto
que me inspirou ("Saramago,
Pessimismo e Xampu", Ilustrada, 22/11/97): "... propõe o ceticismo, sugere a dúvida, serenamente oferece um freio às libações simplistas...descrente que
acredita. Aquelas sobrancelhas
bastas e curvas parecem indicar
perplexidade e indagação... Ao
escolher Kafka, Pessoa e Borges
como seus emblemas literários
dá uma sonora banana e passa
ao largo da etiquetagem ideológica (os dois últimos tidos como
reacionários)..."
Saramago é assim não porque
tenha 76 anos, seja um autor de
sucesso, profundo, manso, europeu, ibérico, socialista. É assim porque é um ser humano
atento, gente como a gente
-sabe julgar, discernir, escolher.
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