São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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WALTER SALLES

"Y tu mamá también" e o novo cinema mexicano

Primeiro veio o choque de "Amores Brutos". O filme de Alejandro Gonzalez Iñárritu revelou um México em convulsão. Seco, visceral, de um realismo cortante, "Amores Brutos" também implodiu com o tom declamatório e sublinhativo das novelas que assolam a América Latina. Impressionantemente bem dirigido e atuado, o filme foi selecionado nos melhores festivais (Cannes, Nova York) e encontrou um público extraordinário em seu próprio país: 3,9 milhões de espectadores. Novo choque. Acabo de assistir a "E Tua Mãe Também", o último filme do também mexicano Alfonso Cuarón, que passou recentemente na Mostra de Cinema de São Paulo. "E Tua Mãe Também" é, como diria Mário Peixoto, de uma inventiva extraordinária -assim como "Amores Brutos". Os dois filmes também contam com o mesmo excelente ator (Gael Garcia Bernal), mas as semelhanças param por aí.
O filme de Cuarón é um road-movie libertário sobre a perda da inocência, baseado em um roteiro de uma inteligência aguda. Tenoch (Diego Luna) e Julio (Gael Garcia Bernal) são de classe alta mexicana, têm 18 anos, a testosterona a flor da pele e um conhecimento pífio do seu próprio país. Um encontro inesperado com a mulher do primo de Tenoch os projeta em território desconhecido. Luisa (Maribel Verdú) vem de um outro país (a Espanha), é mais velha e se transforma no objeto de desejo dos dois meninos. Juntos, os três decidem partir de carro até uma praia imaginária.
É ao mesmo tempo uma descida ao inferno e ao paraíso. Com doses semelhantes de humor, erotismo e melancolia, os meninos vão se confrontando com seus desejos reprimidos e com as dificuldades em transgredi-los. Luisa, a catalisadora dessas transformações, também está visivelmente em processo de mutação. Neste rito de passagem, todos os tabus sexuais vão caindo um a um.
Por trás da viagem de Julio, Luisa e Tenoch, Alfonso Cuarón vai revelando delicadamente um México que não vemos nos cartões postais. Compreende-se então que o filme não é somente uma viagem para o interior dos personagens, mas sobretudo para o interior de um país -o México real. "Sim, é um filme sobre um país à procura de sua identidade, que, como os seus personagens, busca sair da adolescência para entrar na idade adulta", diz Cuarón.
Há um elemento narrativo que torna esta passagem possível. Uma voz-off exterior ao percurso dos três personagens relata o que está ocorrendo à margem da história. O que normalmente fica fora de quadro -as cruzes dos mortos na estrada, um acidente ou uma procissão-passa a ser integrado para dentro do filme. É um processo generoso, que nunca assume uma qualidade impositiva.
"E Tua Mãe" é, também, um filme político. Retrata uma classe social que o cinema latino-americano raramente enquadra, a de uma casta de privilegiados, e a projeta no interior de um país que esses personagens desconhecem. Outra raridade: consegue fazer isto de forma não moralista, sem pré-julgar os personagens ou torná-los caricatos. Outro ponto para Cuarón.
Indubitavelmente, há algo de novo acontecendo no cinema mexicano. Enquanto o jovem cinema europeu é quase sempre de um hermetismo pomposo, Gonzalez e Cuarón nos oferecem acesso a um admirável mundo novo: filmes radicais, que espelham de forma aguda o mundo que enquadram e que se pagam amplamente em seus países de origem. No México, "E Tua Mãe Também" está batendo todos os recordes de público e ganhando dos filmes norte-americanos. O filme já foi visto por mais de quatro milhões de espectadores. Aí é que está a maior novidade: com "Amores Brutos" e "E Tua Mãe Também", acaba a confortável dicotomia entre filme de arte e filme para o grande público.
"Vêm muito mais filmes de jovens cineastas mexicanos por aí", me disse esta semana Cuarón. Comentamos a nova onda argentina, que também vem avançando nessa mesma direção. Pelos filmes de jovens realizadores brasileiros em fase de edição que pude assistir recentemente, muita coisa vai mudar por aqui também. É esperar para ver.


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