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CONTARDO CALLIGARIS
Melhor não conhecer quem você ama
Faz tempo que Laura Kipnis,
professora de comunicação
na Universidade Northwestern,
nos EUA, escreve sobre a vida
amorosa e sexual com uma inteligência e com um brio invejáveis.
Seu último livro acaba de ser publicado no Brasil, "Contra o
Amor, uma Polêmica" (Record).
Para Kipnis, diante da vida de
casal (e no meio dela), nossa ambivalência é sem solução: "Por
um lado, o anseio por intimidade;
por outro, o desejo de autonomia;
por um lado, o conforto e a segurança da rotina; por outro, sua
medonha previsibilidade; por um
lado, o prazer de ser conhecido
profundamente (e de conhecer
profundamente outra pessoa);
por outro, os papéis restritivos
que essa familiaridade prevê".
Kipnis acrescenta que a familiaridade produz "a rotina do
"Pare de Tentar Me Mudar" e a rotina do "Pare de Me Culpar por
Sua Infelicidade'". São, de fato,
duas grandes armadilhas da intimidade do casal: "Você me conhece tão bem que o deleite da
surpresa foi substituído pela paixão pedagógica de me transformar". Ou então: "Você me conhece tão bem que consegue sempre
encontrar em mim as razões de
sua insatisfação".
Não sei se existem formas de
convivência íntima capazes de
evitar que o parceiro se torne tristemente familiar. Kipnis pensa
que não; pessimista e freudiana,
ela não acredita em esparadrapos: na vida de casal, anseios contraditórios se chocam sem parar e
sem remédio. Queremos o impossível: a transparência recíproca e,
ao mesmo tempo (paradoxo), a
preservação daquela aura misteriosa sem a qual, para o outro, somos "o cara" ou "a mina" de sempre, sem surpresas.
Muitos acham intolerável ser
conhecidos profundamente pelo
parceiro. Na convivência do casal, uma expressão banal como
"Eu te conheço" pode ser recebida
com ojeriza e rebeldia, como se o
olhar do outro se tornasse, assim,
a tumba de todos os possíveis:
"Você é este aqui, que amo e conheço, e não é, não foi e não será
nenhum outro".
Ora, freqüentemente, uma fantasia responde a essa dificuldade
do amor. É o devaneio de uma vida passada, totalmente outra e
geralmente excessiva, arriscada e
aventurosa -o contrário, em geral, do cotidiano atual do casal. O
parceiro desconheceria esse passado: ele nos amaria sem saber
quem somos, ou melhor, ela amaria, em nós, um mistério.
Por isso, acontece, às vezes, que
um dos membros de um casal fabule sobre seu passado, não para
tornar-se mais digno do amor recebido (ou seja, mais conforme
com o que o outro espera), mas
para declarar que ele pode ser radicalmente diferente do que o
parceiro imagina. No caso, trata-se de mentiras que não querem
"melhorar" a imagem de quem
fabula; ao contrário, elas inventam um currículo inquietante:
"Já fui drogado, heroína na veia",
"Teve uma época em que transava só em grupo, com homens, mulheres e qualquer coisa que se mexesse" e por aí vai.
Conheci, por exemplo, um casal
em que o marido jurava ter passado anos na prisão (e não por
um erro judiciário). A mulher teimava em demonstrar que o marido mentia, exibia certificados de
antecedentes penais, alegava testemunhas, provava que nada disso era possível. Ela ganhou a disputa, mas foi o fim do casal, pois o
marido mentia para continuar
acreditando que, apesar da "normalidade" do casamento, sua vida permanecia livre e aventurosa.
Mais do que isso, ele queria ser
amado pelo mistério de seu passado inventado, não pelo conformismo de seu presente. Privado
de um falso "segredo" que o mantivesse como enigma aos olhos de
sua amada, ele recorreu à banalidade de pequenas traições para
criar, em compensação, segredos
reais. Logicamente, a relação acabou.
Para esse impasse da vida amorosa, o cinema, repertório de nossos devaneios, propõe algumas
soluções.
O exemplo inaugural é "Gatilho
Relâmpago" ("The Fastest Gun
Alive", 1956), de Russel Rouse, em
que Glenn Ford vive como comerciante tranqüilo (e quase "moscão") numa pequena cidade do
Oeste americano. De fato, ele e
sua família estão fugindo de um
passado em que ele era o maior
dos pistoleiros. Claro, um dia a
coisa estoura.
Melhor ainda é um filme que estréia amanhã no Brasil, "Marcas
da Violência", de David Cronenberg. Melhor, digo, não só por ser
dirigido com extrema simplicidade e maestria, mas por propor
uma versão aprimorada da fantasia em questão. À diferença do
que acontece em "Gatilho Relâmpago", aqui ninguém sabe se o
protagonista esconde ou não um
estranho passado: nem o espectador nem (mais importante) a mulher. Ao meu entender (vejam se
vocês concordam), depois dos
acontecimentos, a família continuará mais unida do que nunca,
por todos terem aprendido a
amar sem a pretensão de conhecer quem eles amam.
Agora, a solução ideal mesmo é
a história de Jason Bourne ("A
Identidade Bourne", de 2002, e "A
Supremacia Bourne", de 2004).
Nesse caso, nem Bourne sabe direito qual foi seu passado. A mulher que, no primeiro filme, torna-se sua companheira se apaixona por um sujeito que é um
enigma para ele mesmo. Talvez
essa seja a melhor maneira de
amar e de ser amado. Mas fazer o
quê? Nem todo mundo pode ser
agente secreto e amnésico.
@ - ccalligari@uol.com.br
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