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TEATRO - OFICINA
"Boca de Ouro" é a tragédia brasileira, diz ator
Lenise Pinheiro/Folha Imagem
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Marcelo Drummond como Boca de Ouro |
da Reportagem Local
O carioca Marcelo Drummond,
37, é a outra face do teatro Oficina. Ele é o primeiro ator da companhia. Foi, entre outros, Hamlet
em "Ham-let" (93), de Shakespeare, e Dioniso em "Bacantes"
(95), de Eurípides.
Em "Boca de Ouro", faz o papel-título, um bicheiro violento e sedutor. Em entrevista, Drummond
diz que o personagem é trágico
como os anteriores. "O Nelson
Rodrigues é a própria tragédia
brasileira", diz. A seguir, trechos
da entrevista.
(NELSON DE SÁ)
Folha - Boca é quase um arquétipo do carioca.
Marcelo Drummond - Do bicheiro, não digo carioca.
Folha - O que é o Boca?
Drummond - É um bicheiro.
Mas o texto do Nelson Rodrigues
é muito carioca. É a fala carioca,
de uma época. Não é mais assim,
porque a fala hoje é parecida em
todo lugar, por causa da televisão.
Mas a peça tem uma cadência que
leva ao samba, ao sambista. Esse
jeito Madureira de ser. É muito
bacana.
Folha - De que bairro você é?
Drummond - Eu nasci no Grajaú, onde o Nelson morou. Tem
umas crônicas de lá.
Folha - O que é, zona norte?
Drummond - Zona norte. Não é
lá, lá, mas é zona norte. É um bairro encravado num vale, ao lado da
floresta da Tijuca. Não é um bairro, assim, de malandro. Mas era
um bairro que tinha um tráfico
pesado.
Folha - Você redescobriu o Rio
por causa da peça?
Drummond - Não, absolutamente. Boca de Ouro no Bexiga.
Folha - Como foi a escolha da
peça?
Drummond - A gente leu o "Anti-Nelson Rodrigues" um dia e foi
uma leitura incrível. Aí o Zé (Celso) falou: "Escolhe um Nelson
que eu faço". A Cibele (Forjaz, diretora) veio com o texto e pediu
para eu ler, num ciclo de leituras.
Aí eu resolvi encarar. Nenhum
papel que fiz eu escolhi: "Ah, quero fazer esse papel".
Folha - O que você vê no personagem, hoje?
Drummond - É diferente de tudo o que eu fiz. É um papel para
um ator mais maduro. O próprio
Nelson Rodrigues fala.
Folha - O que mais? O personagem é um bicheiro. Mais do
que isso, é um...
Drummond - ...Assassino. Ele é
trágico. E ele quer um caixão de
ouro. Desde criança, ele queria
uma dentadura de ouro. Quando
vai pôr, sonha com um caixão de
ouro. A (personagem) Maria Luísa até fala, "isso parece coisa de
um deus asteca". (ri) É engraçado,
porque o dionisismo chega pelo
deus asteca.
Folha - Mas Nelson Rodrigues
tem muito de tragédia grega.
Drummond - O Nelson é a própria tragédia brasileira. O Zé até
propôs ao Walmor (Chagas) fazer
como tragédia grega, lá no teatro
que ele quer construir. A tragédia
grega é diferente por causa dos
episódios, dos estásimos, epodo,
antiepodo. É uma estrutura diferente. Mas a gente pensou em fazer Nelson Rodrigues como tragédia grega. É lindo, porque ele
tem um valor de tragédia.
Folha - Sim, mas a leitura pública de "Boca" foi muito mais
cômica do que se costuma ver
do autor.
Drummond - É engraçada, mas
não é comédia. No vídeo do
"Hamlet", outra tragédia, você vê
o quanto as pessoas riam. "Bacantes", idem. A tragédia é engraçada
justamente para preparar a tragédia. E o engraçado no Nelson é o
falar dele. As palavras que ele usa.
As pessoas morrem de rir quando
se fala: "Coração, aprende". É o
clichê do clichê do clichê. É um
absurdo, uma fala tão rua. Agora,
o Nelson é um trágico.
Folha - Como é a morte do Boca de Ouro?
Drummond - A morte do Boca é
narrada. É narrada por um jornalista. Os jornalistas são importantíssimos no Nelson Rodrigues. E é
engraçado, porque ele coloca o lado canalha do jornalismo. O jornalista é sempre um canalha que
quer inventar uma história, precisa de uma manchete.
Folha - Em que ano você chegou a São Paulo?
Drummond - Em 86. Quando o
Oficina era o maior bode.
Folha - E foi assim até 91.
Drummond - É, não conseguia
estar em cartaz. Mas veio e conseguiu. Está muito ligado à minha
formação, no final das contas. Como não tinha a companhia, eu ficava com o Zé, vivendo, trabalhando, tudo. Aprendendo. Foi
uma relação grega. (ri) Uma relação grega de mestre e discípulo.
No momento em que eu comecei
a ter condições, eu sou abusado,
quis fazer logo...
Folha - ... uma tragédia grega.
Drummond - Como "Bacantes"
não deu, fiz "As Boas".
Folha - Você foi muito criticado, mas o escândalo veio mesmo com "Hamlet", logo depois.
O que diziam?
Drummond - A voz era o mote.
Eu ciciava. Mas, se o Cazuza podia
cantar ciciando, por que eu não
podia falar? Era um Hamlet bem
Cazuza mesmo, bem inspirado
nele. (ri) Eu me lembro de escreverem que optar pelo bissexualismo diminuía o Hamlet.
Folha - Você conheceu Cazuza?
Drummond - Só de vexame. Eu
adorava. De repente, estava no
Baixo Leblon, aí vinha ele berrando: "Eu sou veado, eu sou veado".
Era o meu ídolo.
Folha - O Hamlet foi desenhado em cima do Cazuza?
Drummond - Não, em cima de
mim mesmo. Eu é que era daquele jeito.
Folha - Mas tinha coisas também de Mick Jagger.
Drummond - Também. Tinha
do Caetano (Veloso). A minha geração foi mais influenciada pela
música, pela performance. Não
pelos atores, em cena.
Folha - Mas você viu atores.
Você se espelhou neles?
Drummond - Eu adorava o Asdrubal. Tem em mim esse lado
chanchada, de fazer piada, fazer
rir. Isso é uma coisa muito carioca, muito Asdrubal, Luiz Fernando (Guimarães).
Folha - Você se preparou uma
década para fazer Dioniso, em
"Bacantes". O que você poderia
separar e dizer: "Sou assim por
causa dessa peça"?
Drummond - O Dioniso me deu
liberdade em cena. Até o Hamlet
era muito baseado no Dioniso.
Daí a coisa pop, desses ícones todos. Foi via Dioniso. Ele dá a
consciência de que o mundo pode
ser de outra maneira. "Bacantes"
é anterior a Cristo. Quer dizer, pode existir uma organização social
de aceitação, não precisa ser só a
moral judaico-cristã que nos
achata.
"Bacantes" foi também uma experiência xamânica, o que, para
um ator, é maravilhoso. Até de visualização de falas. A gente trabalhou com ayauhasca.
Folha - O que isso trouxe?
Drummond - Transe. O teatro já
é um transe, mas consciente. Diziam que não dava para ter o transe da ayauhasca no teatro, mas a
gente viu que dava. Você entra na
ação e tem de cumprir do início
ao fim, como um rito. Tem de
passar por aquela pauta, até a catarse. Eu não pratico nenhuma religião, mas o teatro se aproxima
de todos esses ritos de incorporação, ritos mais bárbaros, embora
seja te-a-tro. Mas é um sacerdócio
também.
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