São Paulo, Sexta-feira, 10 de Dezembro de 1999


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TEATRO - OFICINA
"Boca de Ouro" é a tragédia brasileira, diz ator

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Marcelo Drummond como Boca de Ouro


da Reportagem Local

O carioca Marcelo Drummond, 37, é a outra face do teatro Oficina. Ele é o primeiro ator da companhia. Foi, entre outros, Hamlet em "Ham-let" (93), de Shakespeare, e Dioniso em "Bacantes" (95), de Eurípides.
Em "Boca de Ouro", faz o papel-título, um bicheiro violento e sedutor. Em entrevista, Drummond diz que o personagem é trágico como os anteriores. "O Nelson Rodrigues é a própria tragédia brasileira", diz. A seguir, trechos da entrevista. (NELSON DE SÁ)

Folha - Boca é quase um arquétipo do carioca.
Marcelo Drummond -
Do bicheiro, não digo carioca.

Folha - O que é o Boca?
Drummond -
É um bicheiro. Mas o texto do Nelson Rodrigues é muito carioca. É a fala carioca, de uma época. Não é mais assim, porque a fala hoje é parecida em todo lugar, por causa da televisão. Mas a peça tem uma cadência que leva ao samba, ao sambista. Esse jeito Madureira de ser. É muito bacana.

Folha - De que bairro você é?
Drummond -
Eu nasci no Grajaú, onde o Nelson morou. Tem umas crônicas de lá.

Folha - O que é, zona norte?
Drummond -
Zona norte. Não é lá, lá, mas é zona norte. É um bairro encravado num vale, ao lado da floresta da Tijuca. Não é um bairro, assim, de malandro. Mas era um bairro que tinha um tráfico pesado.

Folha - Você redescobriu o Rio por causa da peça?
Drummond -
Não, absolutamente. Boca de Ouro no Bexiga.

Folha - Como foi a escolha da peça?
Drummond -
A gente leu o "Anti-Nelson Rodrigues" um dia e foi uma leitura incrível. Aí o Zé (Celso) falou: "Escolhe um Nelson que eu faço". A Cibele (Forjaz, diretora) veio com o texto e pediu para eu ler, num ciclo de leituras. Aí eu resolvi encarar. Nenhum papel que fiz eu escolhi: "Ah, quero fazer esse papel".

Folha - O que você vê no personagem, hoje?
Drummond -
É diferente de tudo o que eu fiz. É um papel para um ator mais maduro. O próprio Nelson Rodrigues fala.

Folha - O que mais? O personagem é um bicheiro. Mais do que isso, é um...
Drummond -
...Assassino. Ele é trágico. E ele quer um caixão de ouro. Desde criança, ele queria uma dentadura de ouro. Quando vai pôr, sonha com um caixão de ouro. A (personagem) Maria Luísa até fala, "isso parece coisa de um deus asteca". (ri) É engraçado, porque o dionisismo chega pelo deus asteca.

Folha - Mas Nelson Rodrigues tem muito de tragédia grega.
Drummond -
O Nelson é a própria tragédia brasileira. O Zé até propôs ao Walmor (Chagas) fazer como tragédia grega, lá no teatro que ele quer construir. A tragédia grega é diferente por causa dos episódios, dos estásimos, epodo, antiepodo. É uma estrutura diferente. Mas a gente pensou em fazer Nelson Rodrigues como tragédia grega. É lindo, porque ele tem um valor de tragédia.

Folha - Sim, mas a leitura pública de "Boca" foi muito mais cômica do que se costuma ver do autor.
Drummond -
É engraçada, mas não é comédia. No vídeo do "Hamlet", outra tragédia, você vê o quanto as pessoas riam. "Bacantes", idem. A tragédia é engraçada justamente para preparar a tragédia. E o engraçado no Nelson é o falar dele. As palavras que ele usa. As pessoas morrem de rir quando se fala: "Coração, aprende". É o clichê do clichê do clichê. É um absurdo, uma fala tão rua. Agora, o Nelson é um trágico.

Folha - Como é a morte do Boca de Ouro?
Drummond -
A morte do Boca é narrada. É narrada por um jornalista. Os jornalistas são importantíssimos no Nelson Rodrigues. E é engraçado, porque ele coloca o lado canalha do jornalismo. O jornalista é sempre um canalha que quer inventar uma história, precisa de uma manchete.

Folha - Em que ano você chegou a São Paulo?
Drummond -
Em 86. Quando o Oficina era o maior bode.

Folha - E foi assim até 91.
Drummond -
É, não conseguia estar em cartaz. Mas veio e conseguiu. Está muito ligado à minha formação, no final das contas. Como não tinha a companhia, eu ficava com o Zé, vivendo, trabalhando, tudo. Aprendendo. Foi uma relação grega. (ri) Uma relação grega de mestre e discípulo. No momento em que eu comecei a ter condições, eu sou abusado, quis fazer logo...

Folha - ... uma tragédia grega.
Drummond -
Como "Bacantes" não deu, fiz "As Boas".

Folha - Você foi muito criticado, mas o escândalo veio mesmo com "Hamlet", logo depois. O que diziam?
Drummond -
A voz era o mote. Eu ciciava. Mas, se o Cazuza podia cantar ciciando, por que eu não podia falar? Era um Hamlet bem Cazuza mesmo, bem inspirado nele. (ri) Eu me lembro de escreverem que optar pelo bissexualismo diminuía o Hamlet.

Folha - Você conheceu Cazuza?
Drummond -
Só de vexame. Eu adorava. De repente, estava no Baixo Leblon, aí vinha ele berrando: "Eu sou veado, eu sou veado". Era o meu ídolo.

Folha - O Hamlet foi desenhado em cima do Cazuza?
Drummond -
Não, em cima de mim mesmo. Eu é que era daquele jeito.

Folha - Mas tinha coisas também de Mick Jagger.
Drummond -
Também. Tinha do Caetano (Veloso). A minha geração foi mais influenciada pela música, pela performance. Não pelos atores, em cena.

Folha - Mas você viu atores. Você se espelhou neles?
Drummond -
Eu adorava o Asdrubal. Tem em mim esse lado chanchada, de fazer piada, fazer rir. Isso é uma coisa muito carioca, muito Asdrubal, Luiz Fernando (Guimarães).

Folha - Você se preparou uma década para fazer Dioniso, em "Bacantes". O que você poderia separar e dizer: "Sou assim por causa dessa peça"?
Drummond -
O Dioniso me deu liberdade em cena. Até o Hamlet era muito baseado no Dioniso. Daí a coisa pop, desses ícones todos. Foi via Dioniso. Ele dá a consciência de que o mundo pode ser de outra maneira. "Bacantes" é anterior a Cristo. Quer dizer, pode existir uma organização social de aceitação, não precisa ser só a moral judaico-cristã que nos achata.
"Bacantes" foi também uma experiência xamânica, o que, para um ator, é maravilhoso. Até de visualização de falas. A gente trabalhou com ayauhasca.

Folha - O que isso trouxe?
Drummond -
Transe. O teatro já é um transe, mas consciente. Diziam que não dava para ter o transe da ayauhasca no teatro, mas a gente viu que dava. Você entra na ação e tem de cumprir do início ao fim, como um rito. Tem de passar por aquela pauta, até a catarse. Eu não pratico nenhuma religião, mas o teatro se aproxima de todos esses ritos de incorporação, ritos mais bárbaros, embora seja te-a-tro. Mas é um sacerdócio também.


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