São Paulo, sábado, 10 de dezembro de 2005

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LIVROS

ROMANCE

Em "Joana a Contragosto", paulistano repete construção literária de si mesmo, mas obtém resultado diferente

Mirisola reverbera obsessões e rancores

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Nas entrelinhas das palavras incontidas, entre revelações e elipses da narrativa, convém sempre desconfiar do autor que se converte em personagem. Nenhuma ficção, afinal, é mais perigosa do que aquela que se aproxima da realidade; nenhuma mentira, pior do que a que se enreda e se confunde com a verdade.
Marcelo Mirisola, que ninguém o duvide, sabe disso. E sabe tão bem que vem se tornando um mestre nesse jogo vil de disfarces, negando personagem trás personagem, livrando-se de rótulos e alcunhas, apenas para tornar-se novamente e sempre personagem. Desta vez, como narrador e protagonista de seu recém-lançado romance "Joana a Contragosto", o sexto livro do autor.
Sim, mais um personagem de nome Marcelo Mirisola, ou M.M., escritor trancafiado num apartamento paulistano e entregue a suas dores, obsessões e rancores. Joana é o objeto desejado, idéia fixa incrustada em seus pensamentos. "Uma coqueteleira diabólica que misturava tesão e ternura", nas palavras do narrador, isentas de qualquer perdão.
Um enredo simples: a lembrança minuciosa dos poucos dias que precederam o primeiro encontro entre eles -essa inesquecível noite de sexo- e os dias de recuperação após a rejeição que em seguida sofreu o inconsolável narrador. Cortando o longo lamento, apenas algumas digressões auto-exaltatórias e opiniões ácidas ligadas à literatura, nas quais sempre é temeroso acreditar.
Mais do mesmo? O narrador nos diz que não, que este livro é diferente de todos os demais, que hoje ele está mais entregue, mais sincero: "Agora destoei de mim mesmo. Baixei a guarda". Mas o que fazer para comprová-lo? Apelar ao autor, em entrevista por e-mail, para tentar safar-nos dessa armadilha? Perguntar-lhe o que há de realmente diferente?
Ingenuidade nossa. Na resposta de Mirisola, reaparecem as palavras do livro: "É a primeira vez que uma personagem põe o narrador em xeque. Todas as obsessões e repressões dele são nada diante da mulher-demônio que o encurrala sob todos os aspectos". E, para completar o raciocínio e a resposta, a utilização de antigas resenhas que recebeu: "Antes de Joana, as mulheres serviam de escada. Eram arremedos de personagens... serviam apenas para o narrador desfilar seu gênio. Tudo muda a partir de Joana".
Quanto às conseqüências dessa suposta transformação, talvez possamos acreditar em Mirisola. Diante dessa personagem, desse conflito interno, parece inevitável que o romance se torne mais lírico, mais introspectivo. Mirisola concorda e explica: "A partir do momento que o M.M. do livro é confrontado com algo diferente dele mesmo, as saídas são outras. Daí o lirismo e a introspecção".
Mas por que criar sempre tão à sua imagem e semelhança? Impossibilidade de abstrair-se de si mesmo? Uma obsessão por sua própria pessoa, transmutada literariamente por obsessão por Joana, que afinal não passa de sua invenção? Não, Mirisola prefere evitar rebuscamentos. "Ora, porque é um bom personagem. E sobretudo porque causa esse tipo de confusão. Tão banal e divertida."
Em um possível lampejo de sinceridade, entretanto, não se isenta de explicar melhor seu processo de criação: "O ponto de partida pode ser a realidade. Depois vem o exagero, a capacidade de distorcer, mudar de lugar, misturar alhos com bugalhos; enfim, fazer o que chamam por aí de ficção." E logo, nas palavras do autor, ressurge o personagem M.M.: "Isso não é para qualquer pangaré".
Não perdamos de vista, contudo, uma pista: causar confusão. O que mais justificaria, afinal, que o narrador classificasse aqueles que chama de "escritores da Vila Madalena" como um grupo de "gente sem talento e estúpida"? E que ainda o reitere em entrevista? Se tantas vezes o próprio escritor, o Mirisola de carne e osso, pode ser visto a compartilhar mesas de bar e cervejas com muitos dos integrantes desse grupo?


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