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LIVROS
ROMANCE
Em "Joana a Contragosto", paulistano repete construção literária de si mesmo, mas obtém resultado diferente
Mirisola reverbera obsessões e rancores
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
Nas entrelinhas das palavras incontidas, entre revelações e elipses da narrativa, convém sempre
desconfiar do autor que se converte em personagem. Nenhuma
ficção, afinal, é mais perigosa do
que aquela que se aproxima da
realidade; nenhuma mentira, pior
do que a que se enreda e se confunde com a verdade.
Marcelo Mirisola, que ninguém
o duvide, sabe disso. E sabe tão
bem que vem se tornando um
mestre nesse jogo vil de disfarces,
negando personagem trás personagem, livrando-se de rótulos e
alcunhas, apenas para tornar-se
novamente e sempre personagem. Desta vez, como narrador e
protagonista de seu recém-lançado romance "Joana a Contragosto", o sexto livro do autor.
Sim, mais um personagem de
nome Marcelo Mirisola, ou M.M.,
escritor trancafiado num apartamento paulistano e entregue a
suas dores, obsessões e rancores.
Joana é o objeto desejado, idéia fixa incrustada em seus pensamentos. "Uma coqueteleira diabólica
que misturava tesão e ternura",
nas palavras do narrador, isentas
de qualquer perdão.
Um enredo simples: a lembrança minuciosa dos poucos dias que
precederam o primeiro encontro
entre eles -essa inesquecível noite de sexo- e os dias de recuperação após a rejeição que em seguida sofreu o inconsolável narrador. Cortando o longo lamento,
apenas algumas digressões auto-exaltatórias e opiniões ácidas ligadas à literatura, nas quais sempre
é temeroso acreditar.
Mais do mesmo? O narrador
nos diz que não, que este livro é
diferente de todos os demais, que
hoje ele está mais entregue, mais
sincero: "Agora destoei de mim
mesmo. Baixei a guarda". Mas o
que fazer para comprová-lo? Apelar ao autor, em entrevista por e-mail, para tentar safar-nos dessa
armadilha? Perguntar-lhe o que
há de realmente diferente?
Ingenuidade nossa. Na resposta
de Mirisola, reaparecem as palavras do livro: "É a primeira vez
que uma personagem põe o narrador em xeque. Todas as obsessões e repressões dele são nada
diante da mulher-demônio que o
encurrala sob todos os aspectos".
E, para completar o raciocínio e a
resposta, a utilização de antigas
resenhas que recebeu: "Antes de
Joana, as mulheres serviam de escada. Eram arremedos de personagens... serviam apenas para o
narrador desfilar seu gênio. Tudo
muda a partir de Joana".
Quanto às conseqüências dessa
suposta transformação, talvez
possamos acreditar em Mirisola.
Diante dessa personagem, desse
conflito interno, parece inevitável
que o romance se torne mais lírico, mais introspectivo. Mirisola
concorda e explica: "A partir do
momento que o M.M. do livro é
confrontado com algo diferente
dele mesmo, as saídas são outras.
Daí o lirismo e a introspecção".
Mas por que criar sempre tão à
sua imagem e semelhança? Impossibilidade de abstrair-se de si
mesmo? Uma obsessão por sua
própria pessoa, transmutada literariamente por obsessão por Joana, que afinal não passa de sua invenção? Não, Mirisola prefere evitar rebuscamentos. "Ora, porque
é um bom personagem. E sobretudo porque causa esse tipo de
confusão. Tão banal e divertida."
Em um possível lampejo de sinceridade, entretanto, não se isenta
de explicar melhor seu processo
de criação: "O ponto de partida
pode ser a realidade. Depois vem
o exagero, a capacidade de distorcer, mudar de lugar, misturar
alhos com bugalhos; enfim, fazer
o que chamam por aí de ficção." E
logo, nas palavras do autor, ressurge o personagem M.M.: "Isso
não é para qualquer pangaré".
Não perdamos de vista, contudo, uma pista: causar confusão. O
que mais justificaria, afinal, que o
narrador classificasse aqueles que
chama de "escritores da Vila Madalena" como um grupo de "gente sem talento e estúpida"? E que
ainda o reitere em entrevista? Se
tantas vezes o próprio escritor, o
Mirisola de carne e osso, pode ser
visto a compartilhar mesas de bar
e cervejas com muitos dos integrantes desse grupo?
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