São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

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Crítica/livro

Bolaño narra drama da geração 68

Romance "Amuleto" mostra destino de personagens pelos olhos de uma poeta presa durante 13 dias

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim como outros poemas e contos de Roberto Bolaño, "Amuleto" é uma novela-estilhaço saída do buraco negro cosmogônico representado por "Os Detetives Selvagens". Nela, ouvimos a voz (e são tantas as vozes em Bolaño, porém sempre a mesma, a soar na garganta de toda uma geração) de Auxilio Lacouture, poeta uruguaia magra como o Quixote e desdentada feito a poesia, que morde mesmo sem ter dentes com que morder.
Enquanto narra (ou canta), Auxilio, "a mãe dos poetas do México", está presa no banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras, ao mesmo tempo em que o prédio é tomado pelas tropas militares.
Estamos em setembro de 1968, e durante 13 dias, sem ter o que comer (a não ser pedaços de papel higiênico), observaremos ziguezaguearem por seu testemunho (e só ela parece ter a chave desse desfile selvagem) os destinos de Lílian Serpas (ela, que fez amor com Che Guevara) e de seu desafortunado filho Carlos, a vida e a morte dos poetas espanhóis León Felipe e Pedro Garlias (de quem Auxilio era empregada), além do Rei dos Homossexuais da Colônia Guerrero e de outros personagens oriundos do multitudinário "Os Detetives Selvagens", tais como Ulises Lima e Arturo Belano. O livro, não à toa, é dedicado a Mario Santiago, o Ulises Lima real, morto ao ser atropelado em 1998.
Belano é o alter ego de Bolaño, protagonista de parte de suas narrativas (nas quais às vezes surge só como "B.") e anti-herói latino-americano por excelência, um poeta vagabundo cuja totemização da poesia chega à adoração e, ainda mais, a ser a agulha imantada do destino por si, a nortear a tragédia dos contemporâneos de ditaduras na América Latina da segunda metade do século 20.
Política, além de poesia, é a outra das bases do trinômio narrativo de Bolaño, encerrado com a influência (disforme) do romance policial presente na disseminação de pistas ao longo de suas histórias, em geral falsas. Auxilio nos conta, por meio da prosa encantatória do autor chileno, os desatinos e a entrega de toda uma geração que caminhou em direção à morte como se decalcasse, sempre com uma canção nos lábios, a lenda medieval da cruzada das crianças em resgate ao santo sepulcro.
Também pode ser que, para Bolaño -e disto trata toda sua obra, não só "Amuleto"-, não fossem somente crianças, mas sim ratos conduzidos ao abismo da história por um sombrio flautista de Hamelin.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).

AMULETO
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (136 págs.)
Avaliação: ótimo


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