São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

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O baú de Olga

Folha Imagem
Prestes é preso em 1935 após a Intentona Comunista



Lançamento reúne 900 cartas de Prestes; Folha encontra seu último contato com Olga antes de ela ser entregue a Gestapo


MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Num pedaço de papel de 266 centímetros quadrados, a alemã Olga Benario (1908-42) escreveu a lápis, no dia 17 de outubro de 1936, sua última carta ao dirigente comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes (1898-1990) antes de saltar no cais de Hamburgo. Olga e Prestes eram marido e mulher. Judia e militante comunista, ela fora embarcada à força no navio "La Coruña", de bandeira nazista, no porto do Rio. Dois policiais a escoltaram.
Na madrugada seguinte ao momento em que Olga redigiu a mensagem a bordo, o navio atracou na Alemanha. Ela carregava a filha que nasceria em um mês numa prisão de Berlim e ganharia o nome de Anita Leocádia. Logo a menina foi entregue à avó paterna, mãe de Prestes. Olga morreu em 1942, numa câmara de gás.
""Querido, me faltam palavras para te dizer mais", disse Olga na carta, a rigor um bilhete engordado. ""Tu sabes que meus pensamentos e meu coração estarão junto a ti e, apesar de tudo, vou esperar pela hora em que possa voltar a estar a teu lado." Jamais se reencontrariam.
Talvez nunca se saiba se Prestes recebeu a mensagem, trazida para o Brasil pelos policiais do então Distrito Federal que acompanharam Olga. Eles cumpriam ordem do governo de Getúlio Vargas (1882-1954).
Hoje um papel amarelado, a carta foi encontrada pela Folha no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, que herdou os dossiês das polícias políticas do Brasil desde a década de 1920.
O mesmo pacote contém o original do comprovante em que a polícia de Hamburgo atesta ter recebido Olga Benario.
Há sete cartas e bilhetes de Olga para Prestes, em francês. Seis do marido para a mulher, em português. Cinco delas, com exigências, para a polícia. Uma de Prestes para a mãe e a irmã Lygia. Tudo escrito no Brasil (com exceção da carta redigida no navio), de março a outubro de 1936, quando o casal estava em cárceres cariocas.
Existe muito mais, num prontuário que é um baú de preciosidades históricas -a maioria inéditas- sobre Olga e Prestes. Até agora se conhecia parte da correspondência de 1937 a 42. Mas não as cartas trocadas no período de ambos na cadeia no Rio.
Pelas respostas, sabe-se que quase todas as mensagens alcançavam o destinatário. Depois de lidas, eram apropriadas pelos carcereiros. Parte foi parar no arquivo onde está hoje, empacotada de modo precário em papel e amarrada com cordão de padaria.
Um dos personagens mais importantes da história do país no século 20, Prestes conduziu por décadas o Partido Comunista Brasileiro. Em novembro de 1935, dirigiu um malsucedido levante para depor Getúlio que se tornou conhecido como Intentona Comunista.
Olga era agente da Internacional Comunista, órgão que articulava a ação de partidos de esquerda em todo o mundo. Fora enviada com a missão de proteger Prestes, ser o seu guarda-costas. Na viagem, o disfarce dos dois era formar um casal. Apaixonaram-se e uniram-se de verdade.
A saga da judia alemã entregue por Getúlio a Hitler foi contada por Fernando Morais no livro ""Olga", de 1985 (edição atual da Companhia das Letras). A biografia que redescobriu Olga na história nacional já saiu em 22 países. Vai virar filme.
A correspondência revelada por Morais é pós-1936, quando Olga estava na Alemanha. Ele não teria como ter acesso às cartas daquele ano, quando os dois foram presos. Os dossiês políticos (reservados, confidenciais e secretos) da polícia do antigo Distrito Federal só foram liberados pelo Arquivo do Rio em 1992.
Informado sobre o acervo encontrado, Morais disse: ""Olga e Prestes estariam felizes em saber que a revelação de novas cartas mostra esse lado tão bonito da personalidade deles. Muito do sucesso do livro se deve à aparente ambiguidade de Olga: a militante implacável era uma mulher que escrevia cartas de amor."
A filha do casal, a historiadora Anita Leocádia Prestes, 66, acaba de concluir o lançamento da trilogia com a correspondência do pai enquanto esteve preso, de 1936 a 45. No capítulo Olga, incluiu só as cartas a partir de 1937 (leia texto à pág. E5).
Anita diz que conhece o material preservado no Arquivo do Estado do Rio, mas não o transcreveu no livro por considerá-lo de ""menor expressão", se cotejado com a correspondência posterior. ""São mais bilhetes. Tratam de questão de dinheiro, de advogado." Não só, mas têm também essa característica. São cartas ""quentes", tratando dos problemas e dramas do casal na sequência da prisão.
Olga e Prestes sabiam que eram monitorados, mas precisavam se falar. Prestes angustiava-se com a saúde da mulher. Recomendava-lhe um homeopata. Ela perdera 12 quilos, mas jurava estar bem, apesar do fígado que incomodava e dos vômitos. Examinada por um ginecologista, disse: ""Há indicações de que teremos um menino".
A correspondência mostra como ela se deu conta de que sua identidade havia sido descoberta (apresentava-se como ""Maria Prestes"). Pedia conselhos para se defender no processo de expulsão. Quis indicação de advogado. Prestes temeu comprometer alguém, depois propôs três nomes.
Olga prometia: ""Quaisquer que sejam as dificuldades que terei de enfrentar, tu podes estar certo de que jamais me faltarão a força e a coragem necessárias".
Prestes sugeria culpa: ""Preciso assistir com coragem aos golpes que, impotentes para assestarem diretamente contra mim, dirigem contra as pessoas a quem dedico o meu maior afeto".
A polícia recolhia até os rascunhos em francês das cartas. Foram parar no dossiê com fichas (impressões digitais, folha corrida política) que as polícias da Alemanha e da França enviaram sobre Olga. Do mesmo tipo produzido no Rio e que sobreviveu.
Restaram também fotos de Olga, feitas na Europa e no Brasil. Bem como notícias de jornais, que hoje se esfarelam. O essencial segue intacto: as mensagens que Prestes gostava de encerrar com ""beija-te com todo o carinho" e Olga assinava ""a tua". Como no bilhete que acompanhou um pulôver que ela fez em tricô para o marido suportar melhor o frio.


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