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ANÁLISE
Lina interpretou o "pós-Brasília"
GUILHERME WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lina Bo Bardi é uma figura
singular na história da cultura
brasileira. Digo "cultura", e não
"arquitetura", pois a sua singularidade definiu-se exatamente pela
capacidade única de compreender a arquitetura dentro de um
sistema cultural permeável e dialogal. Mas a riqueza do seu legado
não se esgota nessa multidisciplinaridade fecunda, em tudo estranha ao isolamento mais comum
dos arquitetos nos códigos internos do seu "métier". Pode-se dizer que Lina foi "o arquiteto" que
melhor soube interpretar -embora não necessariamente enfrentar- o contexto ideológico-cultural do Brasil pós-bossa nova
e pós-Brasília. Isto é: as contradições de uma sociedade movente e
fraturada, egressa da falência de
um ideário nacional-desenvolvimentista.
Mais dependente do aparelho
de estado e do grande capital do
que outras artes, a arquitetura, no
Brasil, sofreu uma dolorosa amputação histórica com o golpe militar de 64, não sendo capaz de armar uma estratégia de resistência
clara e afirmativa como a que se
vê no tropicalismo, no cinema novo e no neocontretismo.
Contudo, é nesse vácuo que a visão antropológica de Lina ganha
importância. Formada no contexto da emergência do neo-realismo
e da arte povera, na Itália, ela foi
capaz de enxergar a cultura popular, abundante no Brasil, como
matéria-prima de uma contribuição fecunda à modernidade, porque seca e indigesta. Por outro lado, pôde perceber o quanto o nosso artesanato era rudimentar e escasso, e portanto incapaz de promover uma passagem orgânica
para o design industrial moderno.
Esse é o impasse claramente
percebido por ela entre os anos 50
e 60: o Brasil, sendo mais africano
do que "ocidental", é um país onde a seiva da cultural popular não
se esterilizou. No entanto, o problema da verdadeira industrialização tinha fatalmente que ser enfrentado, e uma importante escolha histórica estava em vias de se
realizar: ou o salto do pré-artesanato doméstico a um design brasileiro efetivo, aderente à espessura da cultura cotidiana do país, ou
uma abertura indiscriminada ao
universo dos objetos de consumo,
à ausência de planejamento habitacional-popular, à especulação
imobiliária etc. Se o ponto de vista
de fundo, aqui, é nitidamente
marxista, temperado pela valorização italiana do artesanato, a
operação conceitual é antropofágica: a transformação do atraso
em instrumento de sua própria
superação, em originalidade vital.
Com a derrota histórica desse
modelo de "formação" nacional,
Lina abandona o horizonte de
uma equação ainda generalizável
para o país, aprofundando o caráter heteróclito de sua obra. Entrava em jogo uma perspectiva mais
amarga de futuro, mas que, no entanto, nunca beirou o sectarismo.
É o que vemos, por exemplo, na
exposição "Entreato para Crianças", feita por ela em 1985, em que
recheou maquetes de vidro com
baratas e formigas. Um convite à
fantasia, e à "terrível lógica das
crianças", disse. Mas também
uma "transmutação de todos os
valores", como percebeu Zé Celso
Martinez Corrêa. Um entreato
para a Nova República, onde bichos e crianças "já comem os cadáveres, e anunciam a continuação de mil formas de vida".
Guilherme Wisnik é mestre em história
social pela USP e autor dos livros "Lucio
Costa" (Cosac&Naify) e "Caetano Veloso"
(Publifolha)
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