São Paulo, quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Lina interpretou o "pós-Brasília"

GUILHERME WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lina Bo Bardi é uma figura singular na história da cultura brasileira. Digo "cultura", e não "arquitetura", pois a sua singularidade definiu-se exatamente pela capacidade única de compreender a arquitetura dentro de um sistema cultural permeável e dialogal. Mas a riqueza do seu legado não se esgota nessa multidisciplinaridade fecunda, em tudo estranha ao isolamento mais comum dos arquitetos nos códigos internos do seu "métier". Pode-se dizer que Lina foi "o arquiteto" que melhor soube interpretar -embora não necessariamente enfrentar- o contexto ideológico-cultural do Brasil pós-bossa nova e pós-Brasília. Isto é: as contradições de uma sociedade movente e fraturada, egressa da falência de um ideário nacional-desenvolvimentista.
Mais dependente do aparelho de estado e do grande capital do que outras artes, a arquitetura, no Brasil, sofreu uma dolorosa amputação histórica com o golpe militar de 64, não sendo capaz de armar uma estratégia de resistência clara e afirmativa como a que se vê no tropicalismo, no cinema novo e no neocontretismo.
Contudo, é nesse vácuo que a visão antropológica de Lina ganha importância. Formada no contexto da emergência do neo-realismo e da arte povera, na Itália, ela foi capaz de enxergar a cultura popular, abundante no Brasil, como matéria-prima de uma contribuição fecunda à modernidade, porque seca e indigesta. Por outro lado, pôde perceber o quanto o nosso artesanato era rudimentar e escasso, e portanto incapaz de promover uma passagem orgânica para o design industrial moderno.
Esse é o impasse claramente percebido por ela entre os anos 50 e 60: o Brasil, sendo mais africano do que "ocidental", é um país onde a seiva da cultural popular não se esterilizou. No entanto, o problema da verdadeira industrialização tinha fatalmente que ser enfrentado, e uma importante escolha histórica estava em vias de se realizar: ou o salto do pré-artesanato doméstico a um design brasileiro efetivo, aderente à espessura da cultura cotidiana do país, ou uma abertura indiscriminada ao universo dos objetos de consumo, à ausência de planejamento habitacional-popular, à especulação imobiliária etc. Se o ponto de vista de fundo, aqui, é nitidamente marxista, temperado pela valorização italiana do artesanato, a operação conceitual é antropofágica: a transformação do atraso em instrumento de sua própria superação, em originalidade vital.
Com a derrota histórica desse modelo de "formação" nacional, Lina abandona o horizonte de uma equação ainda generalizável para o país, aprofundando o caráter heteróclito de sua obra. Entrava em jogo uma perspectiva mais amarga de futuro, mas que, no entanto, nunca beirou o sectarismo. É o que vemos, por exemplo, na exposição "Entreato para Crianças", feita por ela em 1985, em que recheou maquetes de vidro com baratas e formigas. Um convite à fantasia, e à "terrível lógica das crianças", disse. Mas também uma "transmutação de todos os valores", como percebeu Zé Celso Martinez Corrêa. Um entreato para a Nova República, onde bichos e crianças "já comem os cadáveres, e anunciam a continuação de mil formas de vida".


Guilherme Wisnik é mestre em história social pela USP e autor dos livros "Lucio Costa" (Cosac&Naify) e "Caetano Veloso" (Publifolha)

Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Quadrinhos: Série sobre HQ destaca o francês Moebius
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.