São Paulo, segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

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LUIZ FELIPE PONDÉ

Churrasco na laje em Paris


O turismo precisa ser barato e, como tudo que tem que ser barato, se torna brega


NA NOITE de Natal, um jovem nigeriano, radical islâmico, tentou explodir um voo de Amsterdã para Detroit. No ano passado, um jovem palestino-americano, também muçulmano, fuzilou colegas militares numa base nos EUA.
Os dois mantinham laços "espirituais" com líderes muçulmanos radicais. Ambos os casos apontam para o fato de que não há uma relação necessária entre pobreza social e educacional e aderência ao projeto terrorista: o jovem nigeriano era milionário e educado em escolas inglesas. O palestino-americano tinha formação universitária.
Vale lembrar que islamismo não é sinônimo de terrorismo islâmico. A maior parte dos muçulmanos quer viver em paz, como eu e você. A mídia foi suave na suspeita de que fatos como esses indicam que, sim, os EUA estão numa guerra com o terrorismo islâmico, como dizia o malvado Bush. A causa dessa suavidade, talvez, seja a parcialidade evidente com a qual a mídia trata o príncipe da esperança Obama. Pouco adiantou seu desfile de "pombinho da paz" pelo mundo islâmico logo após sua posse. Nada mudou.
O conflito continua, e os radicais islâmicos estão longe de ser o que essa elite liberal americana insiste em pensar que são: "pessoas legais", que apenas querem conversar. O que essa elite liberal americana não entende é que esses radicais islâmicos desprezam o blá-blá-blá liberal ocidental e nos considera a todos, do lado de cá, um bando de degenerados, que devem ser combatidos porque não aceitam Alá, só pensam em dinheiro e sexo fácil e não sabem manter as famílias em ordem -o que não deixa de ser verdade...
Um resultado imediato do ato deste "chato nigeriano" será o impacto sobre os procedimentos de segurança no embarque dos aeroportos. Vão piorar e ficar mais paranoicos. Confessemos: viajar se tornou uma tortura. Aeroportos, aviões, hotéis e museus parecem as velhas liquidações de eletrodomésticos, com gente se empurrando para dizer "eu estive em Paris". Quem "sabe" viajar já desistiu do Louvre há muito tempo porque ele virou um templo de adoradores de "códigos da Vinci".
Em 1992, quando fiquei um tempo na Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, visitei a catedral (ex-mesquita) de Córdoba. Numa tarde de outono, os sinos tocavam e pombas voavam no pátio. O silêncio na catedral era uma prova da presença de Deus ou Alá. Meus olhos, diante daquela beleza moura, eram como pulmões sem ar em meio a tanto ar puro. Voltei lá depois. Não se ouve mais sinos. As pombas se suicidaram diante da horda de invasores de férias. O silêncio fugiu. A beleza se recolheu. Só se ouve o ruído da horda e de suas câmeras filmadoras.
O filósofo romeno radicado na França Émil Cioran (século 20) tinha por hábito passar o verão nas praias da Normandia e Bretanha. Num desses momentos, ele escreve que os "novos bárbaros" (os turistas) tomaram o lugar dos "viajantes", pessoas que amam conhecer o mundo pra se "espantar" com ele, e não torná-lo seu "churrasco na laje em Paris".
Além do fato de que o turismo, para sobreviver, precisa ser barato e, como tudo que tem que ser barato, se torna brega. Os aviões cada vez mais se parecem com ônibus cheios de gente mal-educada tirando fotos de si mesmos enquanto berram sobre seus planos de visitar dez cidades em dez dias pagos em cem vezes. Com a fúria típica da "massa feliz", esses neobárbaros transformaram a antes deliciosa experiência de viajar para conhecer novos mundos numa visita a um shopping center de periferia e suas praças de alimentação.
O que fazer? Nada. Fatos como esses são meras sequelas da democracia do capital. Uma contradição sem solução: para funcionar, o capitalismo tem que tornar tudo acessível, e, por isso, tudo tem que virar um supermercado num sabadão. É como conhecer uma praia deserta: se você contar para todo mundo, ela logo vira uma praia insuportável como todas as outras. A horda de bárbaros chegará com suas sacolas, suas crianças, seu ovo duro e sua música horrorosa.
As produtoras de viagem precisam desenvolver ferramentas pra preservar (assim como quem preserva espécies em extinção) espaços no mundo para quem não gosta de churrasco na laje como estilo de vida. Como? Rompendo com operadoras de turismo de massa, montando trajetos para pessoas que detestam museus lotados e jantares típicos bregas. Entendendo que o "tédio com o turismo" pode ser um novo controle de qualidade.

ponde.folha@uol.com.br


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