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LITERATURA
"Vivendo no Limite", que virou filme de Scorsese, descreve a angústia e a felicidade de salvar vidas
"Imaginava o Cristo enquanto escrevia"
MARCELO NETTO RODRIGUES
da Redação
"Salvar vidas é a
melhor droga deste
mundo", contanto
que nessas tentativas não ocorra uma
overdose de mortes. O escritor-paramédico Joe
Connelly, 36, vê-se cercado por
fantasmas que lhe cobram pelos
resultados de suas intercessões
providenciais. No livro, seu alter
ego é Frank Pierce, batizado em
nome de São Francisco de Assis.
Filho de um motorista com
uma enfermeira, trabalhou por
nove anos no mesmo hospital que
seus pais se conheceram.
Inspirado em Hemingway decidiu tornar-se motorista de ambulância num front de batalha urbano, com o peso de "vencer" a caótica Nova York do final dos 80.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York, com as vozes
de suas duas crianças e mulher ao
fundo, Connelly diz que "imaginava o Cristo Redentor sobre o
Rio enquanto escrevia o livro".
Folha - A crítica diz que "Vivendo no Limite" faz pelas ambulâncias o que o filme "Taxi
Driver" fez pelos "yellow cabs"
de Nova York. Quando as sirenes soarem, lembraremos dos
chamados de Frank Pierce.
Joe Connelly - Eles são personagens muito similares que estão
caindo aos pedaços tentando lidar com uma imagem de Nova
York que passa diante de seus
olhos. Mas são muito diferentes
naquilo que os move. Travis Bickle é um produto do que vê, enquanto Frank Pierce tornou-se vítima de suas idéias.
Folha - O nome Frank Pierce
foi inventado de propósito referindo-se a alguém franco e ao
mesmo tempo orgulhoso por
ser assim, mas que carrega um
sentimento penetrante (piercing) na alma?
Connelly - Frank (Francisco),
São Francisco de Assis, franco.
Folha - "Bringing Out the
Dead" (o título em inglês) seria
algo como "imprimindo os mortos"? Frank é como um "Highlander" às avessas, salvando
vidas para se manter imortal.
Connelly - Ele é um personagem único, distinto de qualquer
um que eu conheça. Um paramédico que não tem mais paredes de
proteção. Os mortos o perseguem, e escrever é uma outra forma de salvar suas vidas (Connelly
sem perceber assume seu alter
ego, já que no livro Frank não escreve).
Folha - Quando decidiu tornar-se paramédico você já tinha
alguém na cabeça como Hemingway: motorista de ambulância/enfermeiro, coincidentemente as profissões dos seus
pais.
Connelly - Quando saí da universidade, não tinha nenhuma direção, acabei na Irlanda como
bartender por seis meses. Tudo
estava cinza, lia Hemingway e um
livro de W. Somerset Maugham
("The Razor's Edge") sobre esse
motorista de ambulância na Itália
durante a Primeira Guerra Mundial, e tudo pareceu mais branco e
preto, ir lá salvar vidas no front.
Folha - O Miséria (hospital público descrito no livro) realmente existe?
Connelly - Na verdade, é um lugar metafórico. Um hospital movimentado da Nova York do final
dos 80.
Folha - Li que amenizou algumas histórias para torná-las
mais críveis. No livro, cita o caso
dos gêmeos de uma mãe que jurava ser virgem, mas você não
fala de um chamado que resultou em bebês siameses (apenas
em duas partes distintas do livro faz algumas citações).
Connelly - Todos os resgates no
livro são frutos da mistura de casos diversos. Quando se trabalha
por dez anos nisso, sendo escritor, as linhas entre o que é verdadeiro e o que não é começam a
embaçar, e os limites entre ficção
e realidade desaparecem. Você
aprende a colocar os detalhes certos para tornar tudo possível.
Folha - Você é casado com Mona (mulher que abandona
Frank)?
Connelly - Não, mas minha esposa também é ruiva. No caso dela, ela ficou presa ao pesadelo de
alguém tentar publicar seu primeiro romance, e continuou ao
seu lado, já Mona, teve que partir.
Folha - Mr. Burke (sua vida e
morte dependem de Frank),
Mary (filha de Burke), Rose (garota asmática que morre nas
mãos de Frank), Noël (ex-drogado louco), Constance (a enfermeira cômica), Oh! (um sem-teto) e Cy (o traficante) existiram
como indivíduos ou representam um grupo de pessoas juntas em personagens únicos?
Connelly - Não, nenhuma delas
foi criada com base em alguém específico.
Folha - O que você quer dizer
quando escreve: "Rose sempre
morre, e Noël sempre volta"?
Connelly - É a forma de escrever
a dificuldade deste emprego.
Aqueles a que quer salvar, na
maioria das vezes, são os que não
pode. E aqueles que parecem fazer de tudo para morrer, fazendo
com que pessoas fiquem infelizes,
são os que nunca morrem.
Folha - Quando Nicolas Cage
lhe perguntou que animal Frank
seria, você respondeu, uma girafa.
Connelly - É, com seus pés na
lama, e a cabeça nas nuvens. Mas
pensando melhor, ele torna-se
um espelho da cidade. Scorsese
captou isso muito bem; é visível.
Folha - O ambiente do hospital público que você descreve é
parecido com o brasileiro. As
ruas, com seus catadores de papel e mendigos em chamas,
também. Por que economias
tão díspares apresentam o mesmo quadro clínico?
Connelly - Na economia capitalista sempre existirão aqueles que
vão ser deixados para atrás,
amontoados, agrupados em
áreas. E você pode dar uma nova
demão nos prédios, mas sempre
existirão pessoas gritando.
Folha - "A CIA anda trabalhando com as gangues de cocaína
colombianas para abastecer os
guetos com vício e violência"
(pág.145). O linguista Noam
Chomsky quando esteve em São
Paulo, em 96, disse que o governo aproveita-se da dependência
tóxica para ter um controle sobre as chamadas "minorias",
deixando-as morrer ou fazendo
com que caiam por si mesmas
na prisão. O que fazer para evitar o pensamento de Tom Walls
(o primeiro parceiro), assumindo que é preferível um garoto
pobre de onze anos morto do
que esperar que ele comece a
matar outros?
Connelly - Bom, se eu soubesse
como..., mas não acredito em nenhuma teoria conspiratória.
Folha - Alguns personagens
reclamam da invasão de imigrantes em Nova York: "Deus do
céu, a gente precisa falar espanhol para conseguir uma xícara
de café" ou "Você acha que foi a
liberdade que o trouxe para cá,
o amor pela América? (...) ele está se lixando para a América. (...)
é danoso para nosso povo, nunca deveria ter sido admitido
neste país, e agora que ele está
aqui, é preciso dar um jeito nele", referindo-se a um taxista da
Caxemira. Muitos não foram forçados a ir devido a interferência
norte-americana nos assuntos
internos de vários países?
Connelly - (risos) O que tento
descrever nessas passagens é que
todos somos imigrantes, e como
os grupos que estão no poder, para mantê-lo, dão as costas ao quê
trouxe seus ancestrais para a
América, como se mostrassem hipocrisia. Walls, especialmente, é
alguém que precisa de um inimigo que ele possa agarrar e derrotar com os próprios punhos. Cada
parceiro tem sua maneira de lidar
com a confusão que enfrenta.
Folha - O que você sabe sobre
o Brasil?
Connelly - Eu imaginava o Cristo Redentor sobre o Rio de Janeiro enquanto escrevia o livro.
Frank Pierce tem esse fantasma
chamado Rose sobre ele da mesma forma que essa estátua se põe
acima da cidade, mas às vezes,
penso que Frank é a figura desse
Cristo, alguém que escala o morro, olhando a cidade lá embaixo.
Livro: Vivendo no Limite
Autor: Joe Connelly
Tradução: Laura Teixeira Motta
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (342 págs.)
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