São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 2000


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LITERATURA
"Vivendo no Limite", que virou filme de Scorsese, descreve a angústia e a felicidade de salvar vidas
"Imaginava o Cristo enquanto escrevia"

MARCELO NETTO RODRIGUES
da Redação


"Salvar vidas é a melhor droga deste mundo", contanto que nessas tentativas não ocorra uma overdose de mortes. O escritor-paramédico Joe Connelly, 36, vê-se cercado por fantasmas que lhe cobram pelos resultados de suas intercessões providenciais. No livro, seu alter ego é Frank Pierce, batizado em nome de São Francisco de Assis.
Filho de um motorista com uma enfermeira, trabalhou por nove anos no mesmo hospital que seus pais se conheceram.
Inspirado em Hemingway decidiu tornar-se motorista de ambulância num front de batalha urbano, com o peso de "vencer" a caótica Nova York do final dos 80.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Nova York, com as vozes de suas duas crianças e mulher ao fundo, Connelly diz que "imaginava o Cristo Redentor sobre o Rio enquanto escrevia o livro".

Folha - A crítica diz que "Vivendo no Limite" faz pelas ambulâncias o que o filme "Taxi Driver" fez pelos "yellow cabs" de Nova York. Quando as sirenes soarem, lembraremos dos chamados de Frank Pierce.
Joe Connelly -
Eles são personagens muito similares que estão caindo aos pedaços tentando lidar com uma imagem de Nova York que passa diante de seus olhos. Mas são muito diferentes naquilo que os move. Travis Bickle é um produto do que vê, enquanto Frank Pierce tornou-se vítima de suas idéias.

Folha - O nome Frank Pierce foi inventado de propósito referindo-se a alguém franco e ao mesmo tempo orgulhoso por ser assim, mas que carrega um sentimento penetrante (piercing) na alma?
Connelly -
Frank (Francisco), São Francisco de Assis, franco.

Folha - "Bringing Out the Dead" (o título em inglês) seria algo como "imprimindo os mortos"? Frank é como um "Highlander" às avessas, salvando vidas para se manter imortal.
Connelly -
Ele é um personagem único, distinto de qualquer um que eu conheça. Um paramédico que não tem mais paredes de proteção. Os mortos o perseguem, e escrever é uma outra forma de salvar suas vidas (Connelly sem perceber assume seu alter ego, já que no livro Frank não escreve).

Folha - Quando decidiu tornar-se paramédico você já tinha alguém na cabeça como Hemingway: motorista de ambulância/enfermeiro, coincidentemente as profissões dos seus pais.
Connelly -
Quando saí da universidade, não tinha nenhuma direção, acabei na Irlanda como bartender por seis meses. Tudo estava cinza, lia Hemingway e um livro de W. Somerset Maugham ("The Razor's Edge") sobre esse motorista de ambulância na Itália durante a Primeira Guerra Mundial, e tudo pareceu mais branco e preto, ir lá salvar vidas no front.

Folha - O Miséria (hospital público descrito no livro) realmente existe?
Connelly -
Na verdade, é um lugar metafórico. Um hospital movimentado da Nova York do final dos 80.

Folha - Li que amenizou algumas histórias para torná-las mais críveis. No livro, cita o caso dos gêmeos de uma mãe que jurava ser virgem, mas você não fala de um chamado que resultou em bebês siameses (apenas em duas partes distintas do livro faz algumas citações).
Connelly -
Todos os resgates no livro são frutos da mistura de casos diversos. Quando se trabalha por dez anos nisso, sendo escritor, as linhas entre o que é verdadeiro e o que não é começam a embaçar, e os limites entre ficção e realidade desaparecem. Você aprende a colocar os detalhes certos para tornar tudo possível.

Folha - Você é casado com Mona (mulher que abandona Frank)?
Connelly -
Não, mas minha esposa também é ruiva. No caso dela, ela ficou presa ao pesadelo de alguém tentar publicar seu primeiro romance, e continuou ao seu lado, já Mona, teve que partir.

Folha - Mr. Burke (sua vida e morte dependem de Frank), Mary (filha de Burke), Rose (garota asmática que morre nas mãos de Frank), Noël (ex-drogado louco), Constance (a enfermeira cômica), Oh! (um sem-teto) e Cy (o traficante) existiram como indivíduos ou representam um grupo de pessoas juntas em personagens únicos?
Connelly -
Não, nenhuma delas foi criada com base em alguém específico.

Folha - O que você quer dizer quando escreve: "Rose sempre morre, e Noël sempre volta"?
Connelly -
É a forma de escrever a dificuldade deste emprego. Aqueles a que quer salvar, na maioria das vezes, são os que não pode. E aqueles que parecem fazer de tudo para morrer, fazendo com que pessoas fiquem infelizes, são os que nunca morrem.

Folha - Quando Nicolas Cage lhe perguntou que animal Frank seria, você respondeu, uma girafa.
Connelly -
É, com seus pés na lama, e a cabeça nas nuvens. Mas pensando melhor, ele torna-se um espelho da cidade. Scorsese captou isso muito bem; é visível.

Folha - O ambiente do hospital público que você descreve é parecido com o brasileiro. As ruas, com seus catadores de papel e mendigos em chamas, também. Por que economias tão díspares apresentam o mesmo quadro clínico?
Connelly -
Na economia capitalista sempre existirão aqueles que vão ser deixados para atrás, amontoados, agrupados em áreas. E você pode dar uma nova demão nos prédios, mas sempre existirão pessoas gritando.

Folha - "A CIA anda trabalhando com as gangues de cocaína colombianas para abastecer os guetos com vício e violência" (pág.145). O linguista Noam Chomsky quando esteve em São Paulo, em 96, disse que o governo aproveita-se da dependência tóxica para ter um controle sobre as chamadas "minorias", deixando-as morrer ou fazendo com que caiam por si mesmas na prisão. O que fazer para evitar o pensamento de Tom Walls (o primeiro parceiro), assumindo que é preferível um garoto pobre de onze anos morto do que esperar que ele comece a matar outros?
Connelly -
Bom, se eu soubesse como..., mas não acredito em nenhuma teoria conspiratória.

Folha - Alguns personagens reclamam da invasão de imigrantes em Nova York: "Deus do céu, a gente precisa falar espanhol para conseguir uma xícara de café" ou "Você acha que foi a liberdade que o trouxe para cá, o amor pela América? (...) ele está se lixando para a América. (...) é danoso para nosso povo, nunca deveria ter sido admitido neste país, e agora que ele está aqui, é preciso dar um jeito nele", referindo-se a um taxista da Caxemira. Muitos não foram forçados a ir devido a interferência norte-americana nos assuntos internos de vários países?
Connelly -
(risos) O que tento descrever nessas passagens é que todos somos imigrantes, e como os grupos que estão no poder, para mantê-lo, dão as costas ao quê trouxe seus ancestrais para a América, como se mostrassem hipocrisia. Walls, especialmente, é alguém que precisa de um inimigo que ele possa agarrar e derrotar com os próprios punhos. Cada parceiro tem sua maneira de lidar com a confusão que enfrenta.

Folha - O que você sabe sobre o Brasil?
Connelly -
Eu imaginava o Cristo Redentor sobre o Rio de Janeiro enquanto escrevia o livro. Frank Pierce tem esse fantasma chamado Rose sobre ele da mesma forma que essa estátua se põe acima da cidade, mas às vezes, penso que Frank é a figura desse Cristo, alguém que escala o morro, olhando a cidade lá embaixo.


Livro: Vivendo no Limite Autor: Joe Connelly Tradução: Laura Teixeira Motta Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 24 (342 págs.)

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