São Paulo, quinta-feira, 11 de março de 2004

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FILME

Lynch destrói realidade mumificada

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

As imagens de cinema são a imagem de nossa credulidade: julgamos que algo existe simplesmente porque a vemos.
De certa forma isso é o que também acontece com Betty Elms, a loirinha de "Cidade dos Sonhos", que chega a Hollywood disposta a fazer carreira em cinema e se hospeda na casa de uma tia, atriz, que se encontra em Toronto, filmando. Lá, encontra uma mulher que perdeu a memória.
Não temos motivo para acreditar que essas coisas não acontecem, pois as vemos. Como Betty, somos sonhadores incuráveis. Mas David Lynch sabe que este é um melodrama dos anos 40 -uma colcha de clichês: a garota, a tia protetora, a amnésica. Esta última se dá o nome de Rita, simplesmente porque viu o nome de Rita Hayworth num cartaz -o que serve para confirmar que estamos às voltas com os anos 40/50 e, sobretudo, com idealizações mumificadas da realidade.
É a partir dessa constatação que David Lynch puxa nosso tapete. E o puxa psicanaliticamente. A psicanálise parece, nesse início de século, uma coisa fora de moda. Para que sofrer se uma pílula pode nos dar felicidade? Ao menos esse é o clichê que a indústria farmacêutica vende.
Sofre-se por excesso de ilusão, de clichês. Sofre-se por falta de realidade, de memória. Um filme que Lynch realizou antes desse chamava-se "A História Real". Impressionou porque, ao contrário deste, era direto, simples. A história do homem que atravessa léguas e léguas num carrinho de cortar grama não é simples como parece: é como se fosse o momento em que todos os dados se juntam e se tornam plenos de realidade.
O árduo caminho de Betty até chegar à realidade (à descoberta de que Rita é a estrela que ela queria ser, como interpreta lindamente Vladimir Saflate) é o centro deste filme raro, pleno de sentido, e que, no entanto, nos faz caminhar às cegas (isto é, tendo de duvidar do olhar a cada instante), ao contrário do velho Alvin Straight de "A História Real".


CIDADE DOS SONHOS. Quando: hoje, às 19h15, no Cinemax.


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