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FILME
Lynch destrói realidade mumificada
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
As imagens de cinema são a
imagem de nossa credulidade: julgamos que algo existe simplesmente porque a vemos.
De certa forma isso é o que também acontece com Betty Elms, a
loirinha de "Cidade dos Sonhos",
que chega a Hollywood disposta a
fazer carreira em cinema e se hospeda na casa de uma tia, atriz, que
se encontra em Toronto, filmando. Lá, encontra uma mulher que
perdeu a memória.
Não temos motivo para acreditar que essas coisas não acontecem, pois as vemos. Como Betty,
somos sonhadores incuráveis.
Mas David Lynch sabe que este é
um melodrama dos anos 40
-uma colcha de clichês: a garota,
a tia protetora, a amnésica. Esta
última se dá o nome de Rita, simplesmente porque viu o nome de
Rita Hayworth num cartaz -o
que serve para confirmar que estamos às voltas com os anos 40/50
e, sobretudo, com idealizações
mumificadas da realidade.
É a partir dessa constatação que
David Lynch puxa nosso tapete. E
o puxa psicanaliticamente. A psicanálise parece, nesse início de século, uma coisa fora de moda. Para que sofrer se uma pílula pode
nos dar felicidade? Ao menos esse
é o clichê que a indústria farmacêutica vende.
Sofre-se por excesso de ilusão,
de clichês. Sofre-se por falta de
realidade, de memória. Um filme
que Lynch realizou antes desse
chamava-se "A História Real".
Impressionou porque, ao contrário deste, era direto, simples. A
história do homem que atravessa
léguas e léguas num carrinho de
cortar grama não é simples como
parece: é como se fosse o momento em que todos os dados se juntam e se tornam plenos de realidade.
O árduo caminho de Betty até
chegar à realidade (à descoberta
de que Rita é a estrela que ela queria ser, como interpreta lindamente Vladimir Saflate) é o centro deste filme raro, pleno de sentido, e que, no entanto, nos faz caminhar às cegas (isto é, tendo de
duvidar do olhar a cada instante),
ao contrário do velho Alvin
Straight de "A História Real".
CIDADE DOS SONHOS. Quando: hoje, às
19h15, no Cinemax.
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