|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BIOGRAFIA
Vida privada e Processos de Moscou são foco do terceiro volume da monumental trilogia de Isaac Deutscher
Obra sobre Trótski ainda estimula reflexões
DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA
Nas biografias, a história flerta com a fofoca, o que explica o sucesso editorial que o gênero experimenta. Mas o leitor que
se aventurar pela monumental
tríade dos "profetas", de Isaac
Deutscher (1907-67), finalmente
relançada pela editora Civilização
Brasileira, deve renunciar à fofoca: a história da vida de Leon
Trótski é uma narrativa épica sobre a Revolução, assim mesmo,
com maiúscula.
Os volumes iniciais da tríade
-"O Profeta Armado (1879-1921)" e "O Profeta Desarmado
(1921-1929)"- foram relançados
no ano passado. Agora, chega "O
Profeta Banido (1929-1940)", que
narra o exílio de Trótski e forma a
parte mais trágica da história, na
qual o revolucionário combate só
e brande a única espada que lhe
restou, a palavra, desafiando um
mundo desiludido, incrédulo, encolhido entre as lâminas do fascismo e do stalinismo.
A estatura histórica do personagem e as convicções políticas do
autor, um trotskista polonês, formam uma perigosa combinação:
a fonte perfeita das hagiografias.
Mas Deutscher era um historiador, antes de ser um trotskista. E,
se isso não bastasse, rompeu com
Trótski em 1938, antevendo que a
Quarta Internacional, o último
empreendimento do revolucionário russo, estava fadada a enclausurar-se num cubículo contaminado por estéreis e intermináveis guerrilhas sectárias. Ele ainda
envolveu-se por algum tempo
com um grupo trotskista britânico, mas abandonou a militância
antes de começar a escrever a trilogia, em 1949.
Os dois volumes finais dos
"profetas" surgiram depois do
fim da Guerra Mundial e da morte
de Joseph Stálin, quando a Guerra
Fria assumia as feições da "coexistência pacífica" e os tempos heróicos da Revolução Russa estiolavam-se no passado.
O distanciamento insuflou
equilíbrio e comedimento à pena
de Deutscher, sem atenuar a paixão do historiador militante, do
observador engajado que arriscou tudo ao juntar-se com a oposição trotskista. É essa paixão arrebatada que pulsa em cada página da sua obra magistral.
Deutscher não teve acesso, evidentemente, aos arquivos soviéticos, abertos só depois do colapso
do "império vermelho", em 1991.
Mas as suas fontes abrangem a totalidade dos arquivos pessoais de
Trótski, a vasta documentação da
Oposição de Esquerda internacional e alguns arquivos ocidentais.
"O Profeta Banido" é o único
volume que lança um facho de luz
sobre a vida privada de Trótski,
revelando o conteúdo da correspondência íntima entre o revolucionário e sua esposa e filhos. Essa
narrativa comovente, que jamais
roça o umbral vulgar da fofoca,
acompanha a destruição de uma
família, sob golpes sucessivos e
implacáveis dos serviços secretos
soviéticos.
A melhor parte do volume são
as narrativas sobre os Processos
de Moscou. Elas atestam o silêncio covarde da maior parte dos intelectuais de esquerda, dos líderes
sindicais e dos políticos socialistas
da Europa diante das gigantescas
farsas judiciárias organizadas por
Stálin para liquidar os últimos
vestígios de oposição no Partido
Comunista soviético.
Também registram as abjetas
louvações do "Guia Genial dos
Povos" perenizadas em entrevistas e manifestos de escritores e intelectuais marxistas ou humanistas como Paul Sweezy, Louis Aragon e Romain Rolland. A única
denúncia ampla dos Processos de
Moscou, no momento em que o
drama se desenrolava, deveu-se à
colaboração entre Trótski e o filósofo pragmatista americano John
Dewey, então com 80 anos, que
heroicamente presidiu o contraprocesso de abril de 1937.
O tempo modifica a leitura do
passado. Na primeira edição dos
"profetas", publicada no país em
1968, quando a esquerda procurava um futuro fora da carcaça do
Partidão, o foco principal das
atenções voltou-se para o volume
inicial: o relato da Revolução Russa. Desconfio que, nesses tempos
de falência política e moral do PT,
o volume final ficará com o cetro.
A trilogia de Isaac Deutscher estava esgotada no Brasil há mais de
uma década. O relançamento da
Civilização Brasileira traz um novo projeto gráfico mas, felizmente, conserva a preciosa tradução
de Waltensir Dutra. Opção muito
menos feliz foi a entrega da
"Apresentação" aos cuidados de
Emir Sader, que a usa para promover um envergonhado resgate
moral da ditadura de Stálin.
Trótski - O Profeta Banido (1929
- 1940)
Autor: Isaac Deutscher
Tradução: Waltensir Dutra
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 65,90 (588 págs.)
Texto Anterior: Vitrine Brasileira Próximo Texto: Multilivros Índice
|