São Paulo, sábado, 11 de março de 2006

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BIOGRAFIA

Vida privada e Processos de Moscou são foco do terceiro volume da monumental trilogia de Isaac Deutscher

Obra sobre Trótski ainda estimula reflexões

DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA

Nas biografias, a história flerta com a fofoca, o que explica o sucesso editorial que o gênero experimenta. Mas o leitor que se aventurar pela monumental tríade dos "profetas", de Isaac Deutscher (1907-67), finalmente relançada pela editora Civilização Brasileira, deve renunciar à fofoca: a história da vida de Leon Trótski é uma narrativa épica sobre a Revolução, assim mesmo, com maiúscula.
Os volumes iniciais da tríade -"O Profeta Armado (1879-1921)" e "O Profeta Desarmado (1921-1929)"- foram relançados no ano passado. Agora, chega "O Profeta Banido (1929-1940)", que narra o exílio de Trótski e forma a parte mais trágica da história, na qual o revolucionário combate só e brande a única espada que lhe restou, a palavra, desafiando um mundo desiludido, incrédulo, encolhido entre as lâminas do fascismo e do stalinismo.
A estatura histórica do personagem e as convicções políticas do autor, um trotskista polonês, formam uma perigosa combinação: a fonte perfeita das hagiografias. Mas Deutscher era um historiador, antes de ser um trotskista. E, se isso não bastasse, rompeu com Trótski em 1938, antevendo que a Quarta Internacional, o último empreendimento do revolucionário russo, estava fadada a enclausurar-se num cubículo contaminado por estéreis e intermináveis guerrilhas sectárias. Ele ainda envolveu-se por algum tempo com um grupo trotskista britânico, mas abandonou a militância antes de começar a escrever a trilogia, em 1949.
Os dois volumes finais dos "profetas" surgiram depois do fim da Guerra Mundial e da morte de Joseph Stálin, quando a Guerra Fria assumia as feições da "coexistência pacífica" e os tempos heróicos da Revolução Russa estiolavam-se no passado.
O distanciamento insuflou equilíbrio e comedimento à pena de Deutscher, sem atenuar a paixão do historiador militante, do observador engajado que arriscou tudo ao juntar-se com a oposição trotskista. É essa paixão arrebatada que pulsa em cada página da sua obra magistral.
Deutscher não teve acesso, evidentemente, aos arquivos soviéticos, abertos só depois do colapso do "império vermelho", em 1991. Mas as suas fontes abrangem a totalidade dos arquivos pessoais de Trótski, a vasta documentação da Oposição de Esquerda internacional e alguns arquivos ocidentais.
"O Profeta Banido" é o único volume que lança um facho de luz sobre a vida privada de Trótski, revelando o conteúdo da correspondência íntima entre o revolucionário e sua esposa e filhos. Essa narrativa comovente, que jamais roça o umbral vulgar da fofoca, acompanha a destruição de uma família, sob golpes sucessivos e implacáveis dos serviços secretos soviéticos.
A melhor parte do volume são as narrativas sobre os Processos de Moscou. Elas atestam o silêncio covarde da maior parte dos intelectuais de esquerda, dos líderes sindicais e dos políticos socialistas da Europa diante das gigantescas farsas judiciárias organizadas por Stálin para liquidar os últimos vestígios de oposição no Partido Comunista soviético.
Também registram as abjetas louvações do "Guia Genial dos Povos" perenizadas em entrevistas e manifestos de escritores e intelectuais marxistas ou humanistas como Paul Sweezy, Louis Aragon e Romain Rolland. A única denúncia ampla dos Processos de Moscou, no momento em que o drama se desenrolava, deveu-se à colaboração entre Trótski e o filósofo pragmatista americano John Dewey, então com 80 anos, que heroicamente presidiu o contraprocesso de abril de 1937.
O tempo modifica a leitura do passado. Na primeira edição dos "profetas", publicada no país em 1968, quando a esquerda procurava um futuro fora da carcaça do Partidão, o foco principal das atenções voltou-se para o volume inicial: o relato da Revolução Russa. Desconfio que, nesses tempos de falência política e moral do PT, o volume final ficará com o cetro.
A trilogia de Isaac Deutscher estava esgotada no Brasil há mais de uma década. O relançamento da Civilização Brasileira traz um novo projeto gráfico mas, felizmente, conserva a preciosa tradução de Waltensir Dutra. Opção muito menos feliz foi a entrega da "Apresentação" aos cuidados de Emir Sader, que a usa para promover um envergonhado resgate moral da ditadura de Stálin.


Trótski - O Profeta Banido (1929 - 1940)
    
Autor:
Isaac Deutscher
Tradução: Waltensir Dutra
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 65,90 (588 págs.)


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