São Paulo, sábado, 11 de março de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Horizontes para um ano que afinal começa

Será preciso olhar um pouco além da cortina de fumaça produzida pelos candidatos e pesquisas. O resultado do referendo das armas mostrou como pesquisas antecipadas, às vezes, mascaram a verdade.
Lula declarou à "The Economist" que o Brasil não tinha pressa de crescer. A oposição caiu em cima. No entanto, se observamos o retrospecto das falas de Lula, constatamos que ele deveria estar se referindo ao tipo de pressa que compromete a sustentabilidade do crescimento. Qualquer pessoa inteligente tem pressa de um desenvolvimento sustentável no Brasil.
Ao bombardear Lula por sua frase incompleta, perdeu-se o foco da crítica. O importante é questionar se estamos mesmo no caminho do desenvolvimento sustentável. O governo parece ter cuidado principalmente da variável financeira, ajustando-se ao FMI, pagando dívidas, contendo a inflação.
Acontece que outras variáveis, que teriam de ser costuradas no pacote do desenvolvimento sustentável, foram subestimadas no governo Lula: infra-estrutura, educação, inclusão digital, adaptar a máquina do Estado às necessidades de competir no mundo global.
Naturalmente, ele tratou de todos esses temas. Mas não com urgência e de forma articulada para que se construíssem os grandes alicerces do desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, mesmo se tivesse pressa, seria condenado à lentidão.
Existem muitas maneiras de se discutir o caminho pela frente. De todas, entretanto, a mais generosa, no sentido de que contempla todas as outras, é a discussão sobre como o Brasil se integra melhor no mundo. Alguém pode objetar: o melhor tema é saber como superar as imensas desigualdades sociais. Mas, ainda aqui, a inserção brasileira no mundo é um bom roteiro para buscar a resposta.
Será que nesse torvelinho de campanhas, alianças e tentativas desesperadas de seduzir os eleitores haverá caminho para um debate produtivo?
O que sei, baseado na prática cotidiana, é que a máquina do Estado tem crescido, suas despesas são gigantescas e, cada vez mais, sobressai nossa inadequação ao mundo moderno. Os grandes acordos comerciais são aprovados no Congresso: em muitos casos, não são bem lidos e, quase sempre, incompreendidos. E todos sabem que, nesses acordos, os problemas residem exatamente nos detalhes.
A Câmara tem uma televisão com funcionários e equipamentos próprios; o Senado tem outra. Bons editores condensariam tudo num mesmo canal e ainda sobraria tempo.
Nos EUA, quando entra um novo governo, contratam-se pouco mais de 4.000 pessoas para cargos de confiança. O governo petista já colocou mais de meio milhão de funcionários novos na máquina.
Não é acidente Brasília ter o melhor índice de desenvolvimento humano do país, um nível das grandes cidades européias. A alta burocracia estatal, na qual estamos incluídos, teoricamente deveria fazer o bem da população. Mas, na verdade, cuida melhor de si própria do que do país.
É fácil contestar esses argumentos. Basta classificá-los de tentação neoliberal e jogá-los com o autor na lata de lixo da história. Mas o que fazer com a conclusão de que o Estado brasileiro, ao invés de dinamizar o crescimento, acaba sendo um obstáculo para ele?
Temo que o blablablá eleitoral não nos permita formular algo que possa garantir resultados, como a Índia, o Chile e a Irlanda garantiram a partir de uma leitura adequada de seu potencial no mundo globalizado.
Nos anos em que governou, a oposição não achou o caminho real. O ano que passou indicou que a chamada esquerda renovadora perdeu sua proclamada virgindade ética. A aprovação popular de Lula, depois do escândalo, sugere que estamos diante de um caso de hímen complacente.
As perspectivas portanto não são animadoras. No campo internacional, o Iraque permanece à beira da guerra civil, a vitória do Hamas tencionou as relações com Israel e o Irã, na busca de uma saída nuclear, choca-se com os EUA e a Europa. O Oriente Médio, portanto, está longe da paz.
O teatro da biosegurança no mundo global não tem fronteiras. Mesmo sem um caso de gripe aviária no país, nossas exportações já sofrem o impacto.
O fato de achar o caminho no mundo globalizado não significa descanso. Pelo contrário, é possível perdê-lo a qualquer instante. O que mais temo é sequer ver a questão discutida este ano, com projetos sólidos de transformação. Inclusive da máquina estatal tão cobiçada pelos aliados de governo.
Perder o caminho não significa tragédia. De certa maneira, as variáveis globais serão atacadas, só que espontaneamente, ao sabor das crises, sem um projeto.
Não adianta arrancar cabelos. No Haiti sempre se diz: é preciso paciência. Apesar das grandes diferenças entre um país que funciona e outro mergulhado no caos, a fórmula também vale. Se vier o que está se desenhando no horizonte, será preciso paciência com o Brasil. Teremos de perder até a pressa de crescer de forma sustentada.
A esta altura, o fundamental não é mudar o país repentinamente, mas respeitar seus ritmos e escolhas. Ajudar em todos os momentos em que isso for possível é o único caminho. Mas avançar por conta própria, pois afinal ninguém é de ferro e não haverá espaço para lamúrias.


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