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CINEMA NEGRO
Spike Lee pode ganhar seu primeiro Oscar falando sobre atentado
AMIR LABAKI
de Nova York
O Oscar por
vezes escreve
certo por linhas
tortas: Spike
Lee, um dos
mais influentes
cineastas americanos desde "Faça a Coisa Certa"
(1989), deve levar seu primeiro
prêmio da Academia numa categoria na qual é estreante: o documentário.
Não menos curioso é o fato de "4
Little Girls" (Quatro Garotinhas),
um projeto acalentado por Lee
desde 1983, ser uma produção originalmente para a TV, com o prestigioso selo do canal a cabo HBO
(Home Box Office).
O filme tem se mantido merecidamente como o favorito dentre
os cinco indicados. Não é uma
questão de prestígio. Lee reconstitui com a contundência de praxe o
atentado racista que em 1963 matou quatro estudantes negras
(uma de 11, três de 14 anos) na então capital do segregacionismo
americano, Birmingham, no Estado sulista do Alabama.
As garotas participavam do coro
da igreja que foi alvo da explosão.
O caso marcou época na luta pela
extinção do apartheid à americana. O truculento governador
George Wallace aparece em cinejornais comandado pessoalmente
a repressão aos manifestantes.
Guerreava por uma causa perdida.
Um dos pontos altos do filme é a
reaparição de Wallace, já aposentado, desculpando-se após a derrota. Tenta negar o notório racismo ao posar com um assistente
negro. "Não poderia viver sem
ele", concede, sob o cético olhar
do subordinado. O silêncio dele é
devastador.
Além da recuperação de um impressionante material de arquivo,
"4 Little Girls" emociona ao dar a
voz aos amigos e familiares das vítimas. Addie, Carole, Cynthia e
Denise têm suas curtas vidas calorosamente reconstituídas, expondo-se a cruel e abrupta interrupção de suas trajetórias.
Spike não acertava tanto desde o
subestimado "Malcolm X".
A concorrência não é fácil. "Waco, The Rules of Engagement"
(Waco, As Regras do Engajamento), de William Gazecki, devassa
com fria competência a trágica repressão no início da década ao culto liderado por David Koresh.
Gazecki prova, num paciente
trabalho jornalístico, que Waco
foi uma espécie de Canudos da aurora da era Clinton. Em abril de
1993, o FBI atacou a sede texana da
seita. O afastado complexo em que
viviam pegou fogo, vitimando
mais de 40 pessoas, inclusive mulheres e crianças.
"Ayn Rand, A Sense of Life"
(Ayn Rand, Um Sensação de Vida)
corre por fora como a zebra da categoria. Ayn (lê-se aein) Rand é
uma das personalidades literárias
americanas mais polêmicas do século. Nascida na Rússia pré-soviética, fugiu sozinha para os EUA
depois da ascensão do socialismo
bolchevique. Apaixonada por cinema e determinada a se tornar
escritora, começou como extra e
argumentista de Cecil B. De Mille
ainda na era da Hollywood muda.
Depois de idas e vindas, dois de
seus romances se tornaram clássicos do pensamento liberal, sustentando o mais radical individualismo (o altruísmo é o inimigo, diz
Rand): "The Fountainhead"
(1943) e "Atlas Shrugged".
A partir dos engajados anos 60
os ventos passaram a soprar contra o ideário de Rand. O filme de
Michael Paxton traz inúmeras entrevistas e debates em que a escritora surge como uma maldita polemista de direita.
Hipnóticos olhos castanhos,
eterno cabelo à Louise Brooks,
Rand alterna platitudes, slogans
conservadores e não poucas declarações de bom senso. Foi uma mulher e tanto, um personagem da
magnitude de Leni Riefenstahl,
um misto conservador de Hannah
Arendt e Mary MacCarthy. Paxton
a reinstala no panteão das profetas
do atual neoliberalismo. Depois de
seu filme, ouviremos muito falar
em Ayn Rand.
A tradição joga a favor do quarto
concorrente, "The Long Way Home" (O Longo Caminho de Volta),
de Mark Harris. Documentários
sobre o anti-semitismo têm largo
currículo de vitórias, como provou há dois anos o tocante "Anne
Frank Remembered". Harris pode
colher mais uma com sua elogiada
síntese do destino dos judeus logo
após o fim da Segunda Guerra.
"The Long Way Home" é como
que uma versão documental (e
mais abrangente) de "A Trégua",
de Primo Levi. Resgatam-se a troca dos campos de concentração
pelo de refugiados, as tortuosas
viagens pela Europa destruída, o
reencontro com o anti-semitismo
em territórios liberados, o difícil
parto de um Estado próprio. Harris assina a mais oportuna celebração em filme do cinquentenário de
Israel.
"Colours Straight Up" (Cores
Para Cima), por fim, dá o toque
otimista para o quinteto. Michele
Ohayon casou "Basquete Blues" e
"Fama" para exibir o cotidiano de
uma escola de artes para jovens
pobres de um subúrbio americano. Convencional ao extremo, parece mais um comercial esticado
da Benetton.
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