São Paulo, quarta, 11 de março de 1998

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CINEMA NEGRO
Spike Lee pode ganhar seu primeiro Oscar falando sobre atentado

AMIR LABAKI
de Nova York

O Oscar por vezes escreve certo por linhas tortas: Spike Lee, um dos mais influentes cineastas americanos desde "Faça a Coisa Certa" (1989), deve levar seu primeiro prêmio da Academia numa categoria na qual é estreante: o documentário.
Não menos curioso é o fato de "4 Little Girls" (Quatro Garotinhas), um projeto acalentado por Lee desde 1983, ser uma produção originalmente para a TV, com o prestigioso selo do canal a cabo HBO (Home Box Office).
O filme tem se mantido merecidamente como o favorito dentre os cinco indicados. Não é uma questão de prestígio. Lee reconstitui com a contundência de praxe o atentado racista que em 1963 matou quatro estudantes negras (uma de 11, três de 14 anos) na então capital do segregacionismo americano, Birmingham, no Estado sulista do Alabama.
As garotas participavam do coro da igreja que foi alvo da explosão. O caso marcou época na luta pela extinção do apartheid à americana. O truculento governador George Wallace aparece em cinejornais comandado pessoalmente a repressão aos manifestantes. Guerreava por uma causa perdida.
Um dos pontos altos do filme é a reaparição de Wallace, já aposentado, desculpando-se após a derrota. Tenta negar o notório racismo ao posar com um assistente negro. "Não poderia viver sem ele", concede, sob o cético olhar do subordinado. O silêncio dele é devastador.
Além da recuperação de um impressionante material de arquivo, "4 Little Girls" emociona ao dar a voz aos amigos e familiares das vítimas. Addie, Carole, Cynthia e Denise têm suas curtas vidas calorosamente reconstituídas, expondo-se a cruel e abrupta interrupção de suas trajetórias.
Spike não acertava tanto desde o subestimado "Malcolm X".
A concorrência não é fácil. "Waco, The Rules of Engagement" (Waco, As Regras do Engajamento), de William Gazecki, devassa com fria competência a trágica repressão no início da década ao culto liderado por David Koresh.
Gazecki prova, num paciente trabalho jornalístico, que Waco foi uma espécie de Canudos da aurora da era Clinton. Em abril de 1993, o FBI atacou a sede texana da seita. O afastado complexo em que viviam pegou fogo, vitimando mais de 40 pessoas, inclusive mulheres e crianças.
"Ayn Rand, A Sense of Life" (Ayn Rand, Um Sensação de Vida) corre por fora como a zebra da categoria. Ayn (lê-se aein) Rand é uma das personalidades literárias americanas mais polêmicas do século. Nascida na Rússia pré-soviética, fugiu sozinha para os EUA depois da ascensão do socialismo bolchevique. Apaixonada por cinema e determinada a se tornar escritora, começou como extra e argumentista de Cecil B. De Mille ainda na era da Hollywood muda.
Depois de idas e vindas, dois de seus romances se tornaram clássicos do pensamento liberal, sustentando o mais radical individualismo (o altruísmo é o inimigo, diz Rand): "The Fountainhead" (1943) e "Atlas Shrugged".
A partir dos engajados anos 60 os ventos passaram a soprar contra o ideário de Rand. O filme de Michael Paxton traz inúmeras entrevistas e debates em que a escritora surge como uma maldita polemista de direita.
Hipnóticos olhos castanhos, eterno cabelo à Louise Brooks, Rand alterna platitudes, slogans conservadores e não poucas declarações de bom senso. Foi uma mulher e tanto, um personagem da magnitude de Leni Riefenstahl, um misto conservador de Hannah Arendt e Mary MacCarthy. Paxton a reinstala no panteão das profetas do atual neoliberalismo. Depois de seu filme, ouviremos muito falar em Ayn Rand.
A tradição joga a favor do quarto concorrente, "The Long Way Home" (O Longo Caminho de Volta), de Mark Harris. Documentários sobre o anti-semitismo têm largo currículo de vitórias, como provou há dois anos o tocante "Anne Frank Remembered". Harris pode colher mais uma com sua elogiada síntese do destino dos judeus logo após o fim da Segunda Guerra.
"The Long Way Home" é como que uma versão documental (e mais abrangente) de "A Trégua", de Primo Levi. Resgatam-se a troca dos campos de concentração pelo de refugiados, as tortuosas viagens pela Europa destruída, o reencontro com o anti-semitismo em territórios liberados, o difícil parto de um Estado próprio. Harris assina a mais oportuna celebração em filme do cinquentenário de Israel.
"Colours Straight Up" (Cores Para Cima), por fim, dá o toque otimista para o quinteto. Michele Ohayon casou "Basquete Blues" e "Fama" para exibir o cotidiano de uma escola de artes para jovens pobres de um subúrbio americano. Convencional ao extremo, parece mais um comercial esticado da Benetton.



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