São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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Artista viveu e representou seus ideais

ALDO PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Getúlio Vargas admirava Mussolini. Mas queria o Brasil neutro na guerra e, assim, vender alimentos e matérias-primas aos Estados Unidos. Os alemães, que não partilhavam essa idéia de neutralidade, passaram a torpedear navios mercantes brasileiros. Pelo que, em agosto de 1942, Getúlio se viu compelido a declarar guerra à aliança teuto-italiana.
Como outros brasileiros então na Itália, Lélia Abramo acorreu ansiosa ao consulado em busca do meio mais rápido de retornar. Retornar? No caso dela, só depois da guerra. Sim, sim, o passaporte era brasileiro. Mas, tendo pais italianos, como Lélia tinha, todo brasileiro que fosse viver na Itália assumia ipso facto cidadania italiana. Ante o estado de beligerância entre os dois países, como pretender que o Brasil fosse acolher cidadã italiana?
Nesse limbo de nacionalidade trancado por impermeável lógica kafkiana, Lélia temeu o pior. E o pior era o sobrenome denunciador de sua origem judaica, pois Abramo corresponde ao Abrão bíblico. Na Itália da época, como na Alemanha, judeus eram sistematicamente arrebanhados em campos de concentração donde muitos seriam baldeados para uma viagem sem volta.
Lélia salvou-se com a certidão de batismo dos pais. A família descendia, sim, de judeus, mas se convertera ao cristianismo algumas gerações antes.
Lélia voltou ao Brasil em 1950. Em meados da década, ainda buscava definir-se. O irmão Athos, jornalista e crítico, sugeriu-lhe participar de grupos teatrais amadores de língua italiana.
Naquele tempo, empresários e diretores de teatro buscavam entre amadores talentos novos (e baratos). Quando a descobriu entre os "mambembes", Augusto Boal ofereceu-lhe uma ponta em "A Mulher do Outro", que ele montaria no Teatro de Arena.
Ainda em 1958, ela fez o papel da mãe em "Eles não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri. O papel rendeu a Lélia cinco prêmios e incontáveis aplausos.
Arte dramática e política integraram-se nela naturalmente, como vocação de exibir, no palco, atuação política elevada ao plano de arte. De fato, mais do que a voz poderosa, o senso de "timing" e o vigor da impostação, Lélia canalizava a energia interior da paixão política para iluminar seus personagens. Essa luz brilharia em 28 peças, 14 filmes e 29 novelas.
Em 1977, liderou uma reivindicação sindical por melhores salários e condições de trabalho para artistas da televisão, onde então fazia "Pai Herói" com Paulo Autran. A campanha a conduziu à presidência do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado de São Paulo. Então, por defender empregos, perdeu o próprio: mandaram matar sua personagem, demitiram-na, e durante seis anos a boicotaram na televisão.
Voltaria ainda às câmaras e ao palco, mas, já em seus setentas, a carreira sofria natural declínio. Jovens da imprensa que ocasionalmente pautavam matérias sobre ela, ou a entrevistavam, nunca a tinham visto representar.
O cenário desbotou, o palco esvaziou, a platéia dispersou-se, e seu último papel foi o da mesma solidão real que lhe marcou a vida. Na intimidade dessa solidão, ainda pôde festejar o triunfo eleitoral do PT. Sempre coadjuvante, também nesse drama tocara a ela um papel.


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