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CRÍTICA
"O Anjo do Pavilhão Cinco" tece o brutal com delicadeza
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
É preciso uma grande delicadeza para expressar o brutal.
A longa convivência no Brasil
com estupros, prostituição, violências e humilhações em geral fez
do crime hediondo não uma exceção, mas uma regra paralela,
um código de honra que não exclui momentos de lirismo e heroísmo.
Os relatos que Drauzio Varella,
colunista da Folha, trouxe do
Complexo Penitenciário do Carandiru, embora ofuscados pelo
histórico depoimento de um massacre, têm antes de tudo o mérito
de expor esse universo sem maniqueísmo. Não demoniza nem paternaliza os internos, mas tenta
entender a lógica da população
carcerária que é a ponta do iceberg da miséria do povo brasileiro. Como um Dom Quixote às
avessas, em seus relatos vemos
aquele que combate gigantes como se fossem moinhos, apaixonado pelo que se inventa Dulcinéia a
partir de parcos recursos.
André Fusko se fascinou por esse universo shakespeareano, no
qual violência e desejo tecem tramas vertiginosas, e soube merecer
um conto inédito de Varella:
"Bárbara". Para ele, produziu não
um, mas dois espetáculos, baseados em duas adaptações diferentes, o que por si só já uma experiência interessante.
"O Anjo do Pavilhão Cinco",
com texto de Aimar Labaki, opta
por alinhavar monólogos, o que
faz da peça um vigoroso complemento a "Noite Antes da Floresta", de Koltès, e "A Vida na Praça
Roosevelt", de Dea Loher, que esteve em cartaz no mesmo teatro.
Subjetividades se completam para restituir o trágico, com uma lógica do imponderável, sem atribuir culpas. Xalé, líder inconteste
do pavilhão, abandona a "primeira-dama" Bárbara por Galega,
que tinha um atributo raro: além
de travesti, era transexual. Para se
vingar, Bárbara vai procurar
Faustino, o "anjo" que tinha o respeito de todos até transgredir essa
lei fundamental: não se toma mulher que foi de outro.
Em contraposição ao forte Xalé
de Darson Ribeiro, Fusko faz
Faustino com uma arrepiante delicadeza. Dá conta com maestria
da difícil partitura do diretor Emílio de Biasi, que deforma até o
grotesco a dicção realista, exigência que faz Fabio Penna soar impostado em um personagem menor, mas que leva Ivam Cabral,
que tantos travestis já fez nas últimas performances, a descobrir
uma impressionante virilidade
em sua Bárbara. Maria Gândara, a
Galega, é tocante em seu discurso
sobre ser desejada, sem ter medo
do cômico quando necessário.
A luz de Lenise Pinheiro (fotógrafa colaboradora da Folha), a
partir de poucos recursos, é eficiente para expressar esse universo de simulacros. O figurino de
Fabiano Machado propõe signos
interessantes, e a trilha de Ricardo
Cunha cria um mal-estar indispensável. Apesar de nem sempre
escapar de uma solenidade de
melodrama, evita facilitar a dura
realidade do conto com escrachos
ou discursos retóricos e toca fundo na ferida.
O Anjo do Pavilhão Cinco
Quando: seg. a qua., às 22h30; até 17/5
Onde: Espaço dos Satyros 2
(pça. Franklin Roosevelt, 124, República,
tel. 0/xx/11/3258-6345)
Quanto: R$ 8 (Apetesp) e R$ 20
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