São Paulo, terça-feira, 11 de abril de 2006

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CRÍTICA

"O Anjo do Pavilhão Cinco" tece o brutal com delicadeza

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

É preciso uma grande delicadeza para expressar o brutal. A longa convivência no Brasil com estupros, prostituição, violências e humilhações em geral fez do crime hediondo não uma exceção, mas uma regra paralela, um código de honra que não exclui momentos de lirismo e heroísmo.
Os relatos que Drauzio Varella, colunista da Folha, trouxe do Complexo Penitenciário do Carandiru, embora ofuscados pelo histórico depoimento de um massacre, têm antes de tudo o mérito de expor esse universo sem maniqueísmo. Não demoniza nem paternaliza os internos, mas tenta entender a lógica da população carcerária que é a ponta do iceberg da miséria do povo brasileiro. Como um Dom Quixote às avessas, em seus relatos vemos aquele que combate gigantes como se fossem moinhos, apaixonado pelo que se inventa Dulcinéia a partir de parcos recursos.
André Fusko se fascinou por esse universo shakespeareano, no qual violência e desejo tecem tramas vertiginosas, e soube merecer um conto inédito de Varella: "Bárbara". Para ele, produziu não um, mas dois espetáculos, baseados em duas adaptações diferentes, o que por si só já uma experiência interessante.
"O Anjo do Pavilhão Cinco", com texto de Aimar Labaki, opta por alinhavar monólogos, o que faz da peça um vigoroso complemento a "Noite Antes da Floresta", de Koltès, e "A Vida na Praça Roosevelt", de Dea Loher, que esteve em cartaz no mesmo teatro. Subjetividades se completam para restituir o trágico, com uma lógica do imponderável, sem atribuir culpas. Xalé, líder inconteste do pavilhão, abandona a "primeira-dama" Bárbara por Galega, que tinha um atributo raro: além de travesti, era transexual. Para se vingar, Bárbara vai procurar Faustino, o "anjo" que tinha o respeito de todos até transgredir essa lei fundamental: não se toma mulher que foi de outro.
Em contraposição ao forte Xalé de Darson Ribeiro, Fusko faz Faustino com uma arrepiante delicadeza. Dá conta com maestria da difícil partitura do diretor Emílio de Biasi, que deforma até o grotesco a dicção realista, exigência que faz Fabio Penna soar impostado em um personagem menor, mas que leva Ivam Cabral, que tantos travestis já fez nas últimas performances, a descobrir uma impressionante virilidade em sua Bárbara. Maria Gândara, a Galega, é tocante em seu discurso sobre ser desejada, sem ter medo do cômico quando necessário.
A luz de Lenise Pinheiro (fotógrafa colaboradora da Folha), a partir de poucos recursos, é eficiente para expressar esse universo de simulacros. O figurino de Fabiano Machado propõe signos interessantes, e a trilha de Ricardo Cunha cria um mal-estar indispensável. Apesar de nem sempre escapar de uma solenidade de melodrama, evita facilitar a dura realidade do conto com escrachos ou discursos retóricos e toca fundo na ferida.


O Anjo do Pavilhão Cinco
   
Quando: seg. a qua., às 22h30; até 17/5
Onde: Espaço dos Satyros 2 (pça. Franklin Roosevelt, 124, República, tel. 0/xx/11/3258-6345)
Quanto: R$ 8 (Apetesp) e R$ 20


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