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Índios animaram contemporâneos
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
O português José António Braga
Fernandes Dias, 52, é uma "avis
rara": alia a formação de antropólogo à de especialista em arte contemporânea. "Tem mais cinco ou
seis pessoas no mundo que têm
uma formação como essa", diz.
Professor das universidades de
Lisboa e de Coimbra, Fernandes
Dias mostra o resultado dessa
combinação no módulo de artes
indígenas na Mostra do Redescobrimento, da qual é curador.
A leitura que faz das artes indígenas não tem nada a ver com os
critérios tradicionais de beleza ou
funcionalidade. Para Fernandes
Dias, elas se parecem mais com a
arte contemporânea por causa da
"densidade de significados e a
complexidade de idéias".
É por isso que não faz sentido
chamar a produção dos índios de
artesanato. "A arte dos índios implica um conhecimento filosófico
extremamente complexo e extremamente sofisticado", diz.
É também por isso, segundo ele,
que artistas como Hélio Oiticica e
Lygia Clark se inspiraram em produções indígenas para criar obras
que fizeram história. Como o
manto tupinambá do século 17,
exibido pela primeira vez no Brasil, os parangolés de Oiticica só
existem se forem vestidos e movimentados por alguém.
Em entrevista à Folha, Fernandes Dias diz que foi a complexidade das artes indígenas que fizeram-na permanecer à margem da
história da arte brasileira.
Folha - Por que as artes indígenas
ainda não fazem parte da história
da arte brasileira?
José António Braga Fernandes
Dias - Ao contrário das artes tradicionais africanas e da Oceania,
que foram desde o início do século 20 uma referência muito forte
para os artistas ocidentais que fizeram a revolução modernista, as
artes americanas não tiveram influência alguma. A arte dos índios
da América do Norte só foi olhada
como arte depois da Segunda
Guerra Mundial.
Folha - Qual a razão da exclusão?
Fernandes Dias - Uma das razões
é pragmática: as coleções indígenas que estão em museus eram
muito menos divulgadas. Há razões que têm a ver com questões
estéticas. As artes indígenas da
América têm características formais e conceituais que a fazem
muito diferente de qualquer referência na arte ocidental, seja da
arte clássica, seja do modernismo.
Enquanto as artes africanas e da
Oceania foram utilizadas pelos artistas modernistas porque tinham
tudo a ver com o trabalho deles, as
artes indígenas são muito estranhas. Elas têm um caráter abstrato muito radical. Sempre olhamos
as outras culturas com óculos da
nossa cultura. E não tínhamos nenhuma referência na arte ocidental que permitisse uma aproximação com as artes indígenas.
Folha - Como se resolve esse enigma?
Fernandes Dias - Ao reorientar
nossa visão sobre as artes indígenas. Temos de ser um pouco radicais para isso. Cortamos todas as
referências clássicas, mas também não privilegiamos a visão
modernista, do cubismo, do abstracionismo, do surrealismo.
Achamos que poderíamos encontrar uma ponte ligando as artes
indígenas com a arte conceitual.
Folha - Qual seria a ponte?
Fernandes Dias - O que torna o
urinol de Duchamp uma obra de
arte? O que torna um objeto conceitual um objeto artístico é a densidade de significados e a complexidade de idéias associadas a ele.
Esse mesmo critério podemos
utilizar para as artes indígenas.
Folha - O sr. está querendo dizer
que a arte conceitual e as artes indígenas são familiares?
Fernandes Dias - Exatamente.
Nós organizamos os objetos da
exposição de modo conceitual.
Eles estão agrupados seguindo as
perspectivas indígenas.
Folha - O sr. poderia dar um
exemplo?
Fernandes Dias - Até o objeto
mais simples, seja um ralador de
mandioca, tem uma imensa carga
semântica. Do ponto de vista indígena, a criação de seus objetos
não é humana. Os protótipos foram criados pelos demiurgos no
tempo da criação do mundo. O
copyright desses objetos é sobrenatural, é divino. Esses objetos
transportam o poder divino dos
seres que os criaram. Não são feitos para ser apreciados, mas para
agirem.
Folha - Eles só fazem sentido
quando são usados?
Fernandes Dias - São objetos que
servem para transformar a realidade. Essa capacidade dos objetos
é um poder divino, que os objetos
conservam. No mundo há dois níveis de realidade: a material e a espiritual. Quando um índio manipula um material, ele está a manipular energia cósmica. Quando
ele fabrica alguma coisa, implica
duas obras: uma obra técnica, que
é um saber artesanal, e a manipulação de energias cósmicas.
Folha - Então é errado chamar
obras indígenas de artesanato?
Fernandes Dias - É absolutamente errado. Porque a arte dos índios
implica um conhecimento filosófico complexo e sofisticado. Não é
mera repetição. Queremos alertar
as pessoas de que as visões estereotipadas que elas têm são falsas.
A exposição tem essa função de
criar dúvidas: a pessoa achava que
era assim, mas não é bem assim.
Folha - A idéia é corrigir erros?
Fernandes Dias - É. Um dos equívocos é chamar arte de artesanato. Não é a primeira vez que estamos a chamar esses objetos indígenas de arte. A diferença é que
outras exposições são compostas
de 90% de arte plumária. O que
nós estamos a fazer aqui? Estamos
a deslocar as referências. Não é
mais a referência ocidental, não é
mais a arte clássica, não é o uso cerimonial. Estamos a frisar a densidade de sentidos que os objetos
tornam presentes. Há uma frase
na tese da professora Lucia van
Velthem (também curadora do
módulo de artes indígenas) que
eu gosto muito: "Esses objetos
servem mais para dar a ver do que
para serem vistos".
Folha - Por que a arte índia é reabilitada de tempos em tempos, como no romantismo e no modernismo, e depois cai no esquecimento?
Fernandes Dias - Cada um desses
movimentos tem uma razão diferente. No romantismo, a intenção
era construir uma idéia de nação.
No modernismo, a idéia era se
distinguir do europeu. Penso
também que há uma grande diferença entre a utilização dos modernistas brasileiros das artes indígenas e a utilização da arte africana pelos modernistas europeus.
Os modernistas europeus usam a
arte africana para introduzir um
elemento estranho, para revolucionar. Aqui, os modernistas utilizaram a arte indígena com muita
parcimônia. O artista mais óbvio
é Vicente do Rego Monteiro, que
não é de vanguarda em lugar nenhum. Aqui, a arte indígena não é
utilizada para fazer uma ruptura,
é para acentuar o nacionalismo.
Folha - O crítico Mário Pedrosa
detecta na arte contemporânea
uma tentativa de romper os limites
entre vida e arte, como os índios.
Não é uma visão eurocêntrica?
Fernandes Dias - Não. Nas sociedades indígenas, não há separação entre vida e arte, os objetos
servem para modificar a vida. A
arte separada da vida é uma idéia
criada no Ocidente a partir do renascimento. A arte do século 20
visava quebrar essa barreira entre
a arte e a vida, e aí há um paralelismo com as artes indígenas.
Folha - Havia a idéia de que as artes indígenas deveriam servir de
modelo?
Fernandes Dias - Não. Picasso
usou máscaras africanas em suas
pinturas, mas não é isso que é importante. Rego Monteiro usou arte marajoara como modelo, mas
poderia usar uma natureza-morta. Penso que, na arte contemporânea brasileira, a questão não
passa por uma apropriação meramente iconográfica, mas de conceitos.
Folha - Eles tinham consciência
de que estavam usando conceitos
indígenas?
Fernandes Dias - Estou convencido de que era consciente.
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