São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 2000


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Índios animaram contemporâneos

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O português José António Braga Fernandes Dias, 52, é uma "avis rara": alia a formação de antropólogo à de especialista em arte contemporânea. "Tem mais cinco ou seis pessoas no mundo que têm uma formação como essa", diz. Professor das universidades de Lisboa e de Coimbra, Fernandes Dias mostra o resultado dessa combinação no módulo de artes indígenas na Mostra do Redescobrimento, da qual é curador.
A leitura que faz das artes indígenas não tem nada a ver com os critérios tradicionais de beleza ou funcionalidade. Para Fernandes Dias, elas se parecem mais com a arte contemporânea por causa da "densidade de significados e a complexidade de idéias".
É por isso que não faz sentido chamar a produção dos índios de artesanato. "A arte dos índios implica um conhecimento filosófico extremamente complexo e extremamente sofisticado", diz.
É também por isso, segundo ele, que artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark se inspiraram em produções indígenas para criar obras que fizeram história. Como o manto tupinambá do século 17, exibido pela primeira vez no Brasil, os parangolés de Oiticica só existem se forem vestidos e movimentados por alguém.
Em entrevista à Folha, Fernandes Dias diz que foi a complexidade das artes indígenas que fizeram-na permanecer à margem da história da arte brasileira.

Folha - Por que as artes indígenas ainda não fazem parte da história da arte brasileira?
José António Braga Fernandes Dias -
Ao contrário das artes tradicionais africanas e da Oceania, que foram desde o início do século 20 uma referência muito forte para os artistas ocidentais que fizeram a revolução modernista, as artes americanas não tiveram influência alguma. A arte dos índios da América do Norte só foi olhada como arte depois da Segunda Guerra Mundial.

Folha - Qual a razão da exclusão?
Fernandes Dias -
Uma das razões é pragmática: as coleções indígenas que estão em museus eram muito menos divulgadas. Há razões que têm a ver com questões estéticas. As artes indígenas da América têm características formais e conceituais que a fazem muito diferente de qualquer referência na arte ocidental, seja da arte clássica, seja do modernismo. Enquanto as artes africanas e da Oceania foram utilizadas pelos artistas modernistas porque tinham tudo a ver com o trabalho deles, as artes indígenas são muito estranhas. Elas têm um caráter abstrato muito radical. Sempre olhamos as outras culturas com óculos da nossa cultura. E não tínhamos nenhuma referência na arte ocidental que permitisse uma aproximação com as artes indígenas.

Folha - Como se resolve esse enigma?
Fernandes Dias -
Ao reorientar nossa visão sobre as artes indígenas. Temos de ser um pouco radicais para isso. Cortamos todas as referências clássicas, mas também não privilegiamos a visão modernista, do cubismo, do abstracionismo, do surrealismo. Achamos que poderíamos encontrar uma ponte ligando as artes indígenas com a arte conceitual.

Folha - Qual seria a ponte?
Fernandes Dias -
O que torna o urinol de Duchamp uma obra de arte? O que torna um objeto conceitual um objeto artístico é a densidade de significados e a complexidade de idéias associadas a ele. Esse mesmo critério podemos utilizar para as artes indígenas.

Folha - O sr. está querendo dizer que a arte conceitual e as artes indígenas são familiares?
Fernandes Dias -
Exatamente. Nós organizamos os objetos da exposição de modo conceitual. Eles estão agrupados seguindo as perspectivas indígenas.

Folha - O sr. poderia dar um exemplo?
Fernandes Dias -
Até o objeto mais simples, seja um ralador de mandioca, tem uma imensa carga semântica. Do ponto de vista indígena, a criação de seus objetos não é humana. Os protótipos foram criados pelos demiurgos no tempo da criação do mundo. O copyright desses objetos é sobrenatural, é divino. Esses objetos transportam o poder divino dos seres que os criaram. Não são feitos para ser apreciados, mas para agirem.

Folha - Eles só fazem sentido quando são usados?
Fernandes Dias -
São objetos que servem para transformar a realidade. Essa capacidade dos objetos é um poder divino, que os objetos conservam. No mundo há dois níveis de realidade: a material e a espiritual. Quando um índio manipula um material, ele está a manipular energia cósmica. Quando ele fabrica alguma coisa, implica duas obras: uma obra técnica, que é um saber artesanal, e a manipulação de energias cósmicas.

Folha - Então é errado chamar obras indígenas de artesanato?
Fernandes Dias -
É absolutamente errado. Porque a arte dos índios implica um conhecimento filosófico complexo e sofisticado. Não é mera repetição. Queremos alertar as pessoas de que as visões estereotipadas que elas têm são falsas. A exposição tem essa função de criar dúvidas: a pessoa achava que era assim, mas não é bem assim.

Folha - A idéia é corrigir erros?
Fernandes Dias -
É. Um dos equívocos é chamar arte de artesanato. Não é a primeira vez que estamos a chamar esses objetos indígenas de arte. A diferença é que outras exposições são compostas de 90% de arte plumária. O que nós estamos a fazer aqui? Estamos a deslocar as referências. Não é mais a referência ocidental, não é mais a arte clássica, não é o uso cerimonial. Estamos a frisar a densidade de sentidos que os objetos tornam presentes. Há uma frase na tese da professora Lucia van Velthem (também curadora do módulo de artes indígenas) que eu gosto muito: "Esses objetos servem mais para dar a ver do que para serem vistos".

Folha - Por que a arte índia é reabilitada de tempos em tempos, como no romantismo e no modernismo, e depois cai no esquecimento?
Fernandes Dias -
Cada um desses movimentos tem uma razão diferente. No romantismo, a intenção era construir uma idéia de nação. No modernismo, a idéia era se distinguir do europeu. Penso também que há uma grande diferença entre a utilização dos modernistas brasileiros das artes indígenas e a utilização da arte africana pelos modernistas europeus. Os modernistas europeus usam a arte africana para introduzir um elemento estranho, para revolucionar. Aqui, os modernistas utilizaram a arte indígena com muita parcimônia. O artista mais óbvio é Vicente do Rego Monteiro, que não é de vanguarda em lugar nenhum. Aqui, a arte indígena não é utilizada para fazer uma ruptura, é para acentuar o nacionalismo.

Folha - O crítico Mário Pedrosa detecta na arte contemporânea uma tentativa de romper os limites entre vida e arte, como os índios. Não é uma visão eurocêntrica?
Fernandes Dias -
Não. Nas sociedades indígenas, não há separação entre vida e arte, os objetos servem para modificar a vida. A arte separada da vida é uma idéia criada no Ocidente a partir do renascimento. A arte do século 20 visava quebrar essa barreira entre a arte e a vida, e aí há um paralelismo com as artes indígenas.

Folha - Havia a idéia de que as artes indígenas deveriam servir de modelo?
Fernandes Dias -
Não. Picasso usou máscaras africanas em suas pinturas, mas não é isso que é importante. Rego Monteiro usou arte marajoara como modelo, mas poderia usar uma natureza-morta. Penso que, na arte contemporânea brasileira, a questão não passa por uma apropriação meramente iconográfica, mas de conceitos.

Folha - Eles tinham consciência de que estavam usando conceitos indígenas?
Fernandes Dias -
Estou convencido de que era consciente.



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