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CONTARDO CALLIGARIS
Arapongas de vanguarda da ideologia norte-americana
Fala o presidente Eisenhower: "Nosso intento na
Guerra Fria não é conquistar territórios ou subjugar pela força.
Nosso intento é mais sutil, mais
insinuante, mais completo. Tentamos levar o mundo, por meios
pacíficos, a acreditar na verdade.
A verdade é que os americanos
querem um mundo em paz, um
mundo no qual todos terão a
chance do maior desenvolvimento individual. Os meios dos quais
usaremos são frequentemente ditos "psicológicos". A "guerra psicológica" é a luta para o espírito e a
vontade dos homens".
Nenhuma novidade: a Guerra
Fria não se decidiu pelas armas.
Mas até agora eu pensava que a
luta se travara entre o trabalho
metódico do Kominform moscovita e a sedução exercida pelo
mundo dos objetos. Em suma,
Kominform contra Madison Avenue (que é a meca da publicidade
americana). O Leste nos doutrinava: edições de Moscou, imprensa partidária, escolas de marxismo para quadros políticos, palavras de ordem e carteirinha. O
Oeste não precisava disso: o capitalismo deixava que sua sedução
diabólica se desdobrasse nas vitrinas. Ou simplesmente esperava
sentado que seu ideário se impusesse como o único naturalmente
possível em nossa cultura. Depois
de 19 séculos de apologia do livre-arbítrio, quem -mesmo faminto- sacrificaria qualquer liberdade por um prato de sopa?
Ora, acaba de sair um livro indispensável que mostra algo diferente: "The Cultural Cold War",
de Frances Stonor Saunders. Conta a história documentadíssima
do envolvimento da CIA com as
artes e as letras mundiais, desde o
fim da Segunda Guerra até 1967,
quando a palhaçada ruiu.
Alguns fatos já eram conhecidos, pois no fim dos anos 60 a imprensa americana revelara como
a CIA via inúmeras fundações
-canalizou fundos colossais para promover congressos, livros, revistas, turnês de orquestras etc.
Mas a leitura seguida desta história patética é outra experiência.
Deixa um fundo de desgosto pelos
inúmeros intelectuais envolvidos.
Arthur Koestler, Ignazio Silone,
Isaiah Berlin, Denis de Rougemont, Raymond Aron e outros
que provavelmente sabiam. E
ainda outros, ingênuos ou falsos
ingênuos: Igor Stravinski, a Orquestra Sinfônica de Boston,
Leontine Price, o New York City
Ballet, Gertrude Stein, Debussy,
Cocteau, e por aí vai, que pegaram carona preferindo não saber.
Para que o século se tornasse
deveras americano, não era suficiente dominar o planeta econômica e militarmente. Também
era preciso que os pensamentos e
os gostos dos intelectuais do mundo inteiro se voltassem para os Estados Unidos.
Algumas vezes a operação teve
sucesso. Ela fez muito para o deslocamento do mundo das artes de
Paris para Nova York a partir dos
anos 60. A CIA, descubro com
Saunders, promoveu pelo mundo
afora Jackson Pollock e o expressionismo abstrato. Qual melhor
arte opor ao "desprezível" realismo socialista pregado por Zdanov? Como dizer melhor a liberdade subjetiva e individual de expressão do que com o "action-painting" de Pollock? Eles e os outros da escola de NY nunca entenderam de onde e como choveu sobre eles tanto sucesso, em particular europeu: convites, exposições,
galerias etc. É curioso: todos morreram logo, tragicamente infelizes. Mark Rothko, por exemplo, se
suicidou em 65. Segundo seus
amigos, foi em parte por não conseguir conciliar seu incrível sucesso financeiro com o que ele imaginava que fosse o valor antimaterialista e antiburguês de sua obra.
Dúvida inquietante: em que
medida a CIA influenciou nossos
gostos intelectuais e artísticos?
Até que ponto ela provocou o
eclipse quase mundial do realismo na arte? Mas não vamos perder o bom humor: amanhã vou
vender meu Pollock e comprar
três Portinari.
Aliás, nesta história, a dimensão de farsa está sempre presente.
A América Latina não era muito
importante. A CIA devia pensar
que quem ganhasse a batalha das
idéias na Europa levaria a América do Sul de brinde. Aqui só incomodava o prestígio de Neruda.
Era necessário portanto mostrar
serviço, ou seja, mostrar poeta.
Em 1962, mandaram Robert Lowell, o qual sabia que o dinheiro
fedia, mas aceitou porque era legal viajar de primeira classe. No
Rio deu tudo certo, talvez pela
presença de Elisabeth Bishop. Lowell, conversando com ela, podia
justificar seu passeio. Mas, chegando em Buenos Aires, o poeta
-maníaco depressivo- parou
de tomar sua medicação. Aí
anunciou que ele era o "César da
Argentina", deu uma palestra
exaltando o Führer, tirou a roupa
e subiu numa estátua equestre.
Não sei qual, talvez "San Martín". Enfiado numa camisa de
força, pediu que Botsford -o
agente da CIA que o acompanhava- assobiasse "Yankee Doodle". Cena admirável: um grande
poeta americano transformado
em agente secreto cultural cavalga pelado com "San Martín" para
liberar o cone sul. Com isso, Lowell conseguiu escrever uma espécie de "action-poem", vingando
Pollock e os outros. Fez uma "performance" que dizia a Botsford e
a quem quisesse ouvir que o rei
está sempre ridiculamente nu.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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