São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS

Arapongas de vanguarda da ideologia norte-americana

Fala o presidente Eisenhower: "Nosso intento na Guerra Fria não é conquistar territórios ou subjugar pela força. Nosso intento é mais sutil, mais insinuante, mais completo. Tentamos levar o mundo, por meios pacíficos, a acreditar na verdade. A verdade é que os americanos querem um mundo em paz, um mundo no qual todos terão a chance do maior desenvolvimento individual. Os meios dos quais usaremos são frequentemente ditos "psicológicos". A "guerra psicológica" é a luta para o espírito e a vontade dos homens".
Nenhuma novidade: a Guerra Fria não se decidiu pelas armas. Mas até agora eu pensava que a luta se travara entre o trabalho metódico do Kominform moscovita e a sedução exercida pelo mundo dos objetos. Em suma, Kominform contra Madison Avenue (que é a meca da publicidade americana). O Leste nos doutrinava: edições de Moscou, imprensa partidária, escolas de marxismo para quadros políticos, palavras de ordem e carteirinha. O Oeste não precisava disso: o capitalismo deixava que sua sedução diabólica se desdobrasse nas vitrinas. Ou simplesmente esperava sentado que seu ideário se impusesse como o único naturalmente possível em nossa cultura. Depois de 19 séculos de apologia do livre-arbítrio, quem -mesmo faminto- sacrificaria qualquer liberdade por um prato de sopa?
Ora, acaba de sair um livro indispensável que mostra algo diferente: "The Cultural Cold War", de Frances Stonor Saunders. Conta a história documentadíssima do envolvimento da CIA com as artes e as letras mundiais, desde o fim da Segunda Guerra até 1967, quando a palhaçada ruiu.
Alguns fatos já eram conhecidos, pois no fim dos anos 60 a imprensa americana revelara como a CIA via inúmeras fundações -canalizou fundos colossais para promover congressos, livros, revistas, turnês de orquestras etc.
Mas a leitura seguida desta história patética é outra experiência. Deixa um fundo de desgosto pelos inúmeros intelectuais envolvidos. Arthur Koestler, Ignazio Silone, Isaiah Berlin, Denis de Rougemont, Raymond Aron e outros que provavelmente sabiam. E ainda outros, ingênuos ou falsos ingênuos: Igor Stravinski, a Orquestra Sinfônica de Boston, Leontine Price, o New York City Ballet, Gertrude Stein, Debussy, Cocteau, e por aí vai, que pegaram carona preferindo não saber.
Para que o século se tornasse deveras americano, não era suficiente dominar o planeta econômica e militarmente. Também era preciso que os pensamentos e os gostos dos intelectuais do mundo inteiro se voltassem para os Estados Unidos.
Algumas vezes a operação teve sucesso. Ela fez muito para o deslocamento do mundo das artes de Paris para Nova York a partir dos anos 60. A CIA, descubro com Saunders, promoveu pelo mundo afora Jackson Pollock e o expressionismo abstrato. Qual melhor arte opor ao "desprezível" realismo socialista pregado por Zdanov? Como dizer melhor a liberdade subjetiva e individual de expressão do que com o "action-painting" de Pollock? Eles e os outros da escola de NY nunca entenderam de onde e como choveu sobre eles tanto sucesso, em particular europeu: convites, exposições, galerias etc. É curioso: todos morreram logo, tragicamente infelizes. Mark Rothko, por exemplo, se suicidou em 65. Segundo seus amigos, foi em parte por não conseguir conciliar seu incrível sucesso financeiro com o que ele imaginava que fosse o valor antimaterialista e antiburguês de sua obra.
Dúvida inquietante: em que medida a CIA influenciou nossos gostos intelectuais e artísticos? Até que ponto ela provocou o eclipse quase mundial do realismo na arte? Mas não vamos perder o bom humor: amanhã vou vender meu Pollock e comprar três Portinari.
Aliás, nesta história, a dimensão de farsa está sempre presente. A América Latina não era muito importante. A CIA devia pensar que quem ganhasse a batalha das idéias na Europa levaria a América do Sul de brinde. Aqui só incomodava o prestígio de Neruda. Era necessário portanto mostrar serviço, ou seja, mostrar poeta. Em 1962, mandaram Robert Lowell, o qual sabia que o dinheiro fedia, mas aceitou porque era legal viajar de primeira classe. No Rio deu tudo certo, talvez pela presença de Elisabeth Bishop. Lowell, conversando com ela, podia justificar seu passeio. Mas, chegando em Buenos Aires, o poeta -maníaco depressivo- parou de tomar sua medicação. Aí anunciou que ele era o "César da Argentina", deu uma palestra exaltando o Führer, tirou a roupa e subiu numa estátua equestre. Não sei qual, talvez "San Martín". Enfiado numa camisa de força, pediu que Botsford -o agente da CIA que o acompanhava- assobiasse "Yankee Doodle". Cena admirável: um grande poeta americano transformado em agente secreto cultural cavalga pelado com "San Martín" para liberar o cone sul. Com isso, Lowell conseguiu escrever uma espécie de "action-poem", vingando Pollock e os outros. Fez uma "performance" que dizia a Botsford e a quem quisesse ouvir que o rei está sempre ridiculamente nu.


E-mail: ccalligari@uol.com.br



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