São Paulo, sábado, 11 de maio de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"OS TRABALHADORES DO MAR"

Clássico do francês volta às prateleiras

Edição traz Machado como tradutor de Victor Hugo

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Os Trabalhadores do Mar" possibilitaram o encontro de três bruxos. O primeiro é Gilliat, o "filho do diabo" e herói desse romance de Victor Hugo, o bruxo das letras francesas. O terceiro é Machado de Assis, que traduziu a obra para o português.
Machado ainda não era o "bruxo do Cosme Velho" como passou a ser alcunhado. Para os amigos, era o Machadinho, como conta a biografia de Lúcia Miguel Pereira. Na década de 60 do século 19, com seus 20 e poucos anos, e sem ter publicado nenhum de seus romances, ele mourejava. Escrevia crônicas, contos, críticas literárias e teatrais, para diversos jornais e revistas. Compunha comédias para o teatro. E traduziu o supra-sumo do folhetim internacional. Além, é claro, deste "Os Trabalhadores do Mar".
Na introdução ao livro, a crítica literária Leda Tenório da Motta pergunta se há semelhança entre o socialista romântico Victor Hugo e o niilista Machado de Assis. A primeira hipótese é a de que não haveria, e que o brasileiro apenas traduziu o francês movido por contingências financeiras.
Que se pese na suposição o tresloucado enredo dessa tragédia hugoana. O marinheiro Gilliat decide desafiar as forças da natureza pelo amor da bela Déruchette. A moça prometera se casar com o homem que resgatasse uma máquina a vapor de um navio soçobrado. Para isso, Gilliat enfrenta as águas do canal da Mancha, onde habita um ser monstruoso, parecido com uma lula gigante.
Motta observa que o que importa no romance não é a trama, mas "a própria Mancha, as personagens ali circunscritas e, principalmente, o caráter transcendente da retórica magistral do prosador-poeta". Partindo desse pressuposto, haveria influência do bruxo francês no bruxo brasileiro?
Motta acredita que sim, e ela estaria na esfera da técnica literária: "Basta abrir "Os Trabalhadores do Mar" para ver onde Machado aprendeu a arte de pôr um texto longo em capítulos [...", cortando a ação do modo mais seco, surpreendente e operativo; a dar mais importância às personagens e a seu entorno que ao enredo".
Mas é forçoso notar que também há algo do enredo de "Os Trabalhadores do Mar" em Machado. O romance se abre com uma cena muda entre Gilliat e Déruchette. O marinheiro segue a moça a distância. Nevara. De repente, ela percebe a presença de Gilliat. Déruchette pára, ri, segue seu rumo. O herói chega até onde ela estivera e vê que a jovem escrevera algo na neve: o nome dele. O gesto faz Gilliat indagar-se: "Mas por que escreveu ela meu nome na neve? [..." É isso. Compreendo. Déruchette ama-me".
O reconhecimento do amor se dá por recurso semelhante em "Dom Casmurro", escrito por Machado mais de 30 anos depois. Quando jovem, Bentinho surpreende Capitu riscando algo no muro: o nome dos dois. Nas palavras de Bentinho: "Confissão de criança, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós". O autor explora talvez o terreno da ambiguidade, usando um recurso romanesco para acentuar a incerteza no gesto de Capitu. Teria ela sido surpreendida ou teria rabiscado o muro de propósito, percebendo a chegada de Bentinho?
Não há ambiguidade em Hugo. Déruchette vê Gilliat aproximar-se. No fundo, é uma moça coquete: "Déruchette tinha o olhar indolente e agressivo, sem que o soubesse. Não conhecia talvez o sentido da palavra amor e fazia com que a gente se apaixonasse por ela. Mas era sem má intenção". Hugo a descreve como criatura que aproveita a plenitude do dia: "Naquela moça a lembrança dissipava-se como neve que se funde". Enquanto Gilliat aventura-se no mar, Déruchette apaixona-se por outro. É a tragédia do herói, a de ter acreditado no amor inscrito na neve que derrete.
O suporte material de Bentinho e Capitu, o muro, parece coisa mais sólida. Eles se casam, afinal, mas o protagonista questionará a fidelidade da amada até o fim. Há outras coincidências, como idades semelhantes (16 e 14 anos quando inscrevem os nomes) e os olhares: Déruchette tem olhar "indolente", e Capitu, os famosos "olhos de ressaca".
Bentinho julga que a Capitu infiel já estava dentro da Capitu menina. Não poderíamos dizer igualmente que, "como fruta dentro da casca", o bruxo do Cosme Velho já existia no Machadinho tradutor? Ou melhor, que a semente literária deste último tenha aflorado de maneira insuspeitada no primeiro? Quem provar o fruto saberá.


Tradução:     
Os Trabalhadores do Mar   
Autor: Victor Hugo
Tradutor: Machado de Assis
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 38 (352 págs.)




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