|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO/LANÇAMENTO
"OS TRABALHADORES DO MAR"
Clássico do francês volta às prateleiras
Edição traz Machado como tradutor de Victor Hugo
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Os Trabalhadores do
Mar" possibilitaram o encontro de três bruxos. O primeiro
é Gilliat, o "filho do diabo" e herói
desse romance de Victor Hugo, o
bruxo das letras francesas. O terceiro é Machado de Assis, que traduziu a obra para o português.
Machado ainda não era o "bruxo do Cosme Velho" como passou a ser alcunhado. Para os amigos, era o Machadinho, como
conta a biografia de Lúcia Miguel
Pereira. Na década de 60 do século 19, com seus 20 e poucos anos, e
sem ter publicado nenhum de
seus romances, ele mourejava. Escrevia crônicas, contos, críticas literárias e teatrais, para diversos
jornais e revistas. Compunha comédias para o teatro. E traduziu o
supra-sumo do folhetim internacional. Além, é claro, deste "Os
Trabalhadores do Mar".
Na introdução ao livro, a crítica
literária Leda Tenório da Motta
pergunta se há semelhança entre
o socialista romântico Victor Hugo e o niilista Machado de Assis. A
primeira hipótese é a de que não
haveria, e que o brasileiro apenas
traduziu o francês movido por
contingências financeiras.
Que se pese na suposição o tresloucado enredo dessa tragédia
hugoana. O marinheiro Gilliat decide desafiar as forças da natureza
pelo amor da bela Déruchette. A
moça prometera se casar com o
homem que resgatasse uma máquina a vapor de um navio soçobrado. Para isso, Gilliat enfrenta
as águas do canal da Mancha, onde habita um ser monstruoso, parecido com uma lula gigante.
Motta observa que o que importa no romance não é a trama, mas
"a própria Mancha, as personagens ali circunscritas e, principalmente, o caráter transcendente da
retórica magistral do prosador-poeta". Partindo desse pressuposto, haveria influência do bruxo
francês no bruxo brasileiro?
Motta acredita que sim, e ela estaria na esfera da técnica literária:
"Basta abrir "Os Trabalhadores do
Mar" para ver onde Machado
aprendeu a arte de pôr um texto
longo em capítulos [...", cortando
a ação do modo mais seco, surpreendente e operativo; a dar
mais importância às personagens
e a seu entorno que ao enredo".
Mas é forçoso notar que também há algo do enredo de "Os
Trabalhadores do Mar" em Machado. O romance se abre com
uma cena muda entre Gilliat e Déruchette. O marinheiro segue a
moça a distância. Nevara. De repente, ela percebe a presença de
Gilliat. Déruchette pára, ri, segue
seu rumo. O herói chega até onde
ela estivera e vê que a jovem escrevera algo na neve: o nome dele. O
gesto faz Gilliat indagar-se: "Mas
por que escreveu ela meu nome
na neve? [..." É isso. Compreendo.
Déruchette ama-me".
O reconhecimento do amor se
dá por recurso semelhante em
"Dom Casmurro", escrito por
Machado mais de 30 anos depois.
Quando jovem, Bentinho surpreende Capitu riscando algo no
muro: o nome dos dois. Nas palavras de Bentinho: "Confissão de
criança, tu valias bem duas ou três
páginas, mas quero ser poupado.
Em verdade, não falamos nada; o
muro falou por nós". O autor explora talvez o terreno da ambiguidade, usando um recurso romanesco para acentuar a incerteza
no gesto de Capitu. Teria ela sido
surpreendida ou teria rabiscado o
muro de propósito, percebendo a
chegada de Bentinho?
Não há ambiguidade em Hugo.
Déruchette vê Gilliat aproximar-se. No fundo, é uma moça coquete: "Déruchette tinha o olhar indolente e agressivo, sem que o
soubesse. Não conhecia talvez o
sentido da palavra amor e fazia
com que a gente se apaixonasse
por ela. Mas era sem má intenção". Hugo a descreve como criatura que aproveita a plenitude do
dia: "Naquela moça a lembrança
dissipava-se como neve que se
funde". Enquanto Gilliat aventura-se no mar, Déruchette apaixona-se por outro. É a tragédia do
herói, a de ter acreditado no amor
inscrito na neve que derrete.
O suporte material de Bentinho
e Capitu, o muro, parece coisa
mais sólida. Eles se casam, afinal,
mas o protagonista questionará a
fidelidade da amada até o fim. Há
outras coincidências, como idades semelhantes (16 e 14 anos
quando inscrevem os nomes) e os
olhares: Déruchette tem olhar
"indolente", e Capitu, os famosos
"olhos de ressaca".
Bentinho julga que a Capitu infiel já estava dentro da Capitu menina. Não poderíamos dizer
igualmente que, "como fruta dentro da casca", o bruxo do Cosme
Velho já existia no Machadinho
tradutor? Ou melhor, que a semente literária deste último tenha
aflorado de maneira insuspeitada
no primeiro? Quem provar o fruto saberá.
Tradução:
Os Trabalhadores do Mar
Autor: Victor Hugo
Tradutor: Machado de Assis
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 38 (352 págs.)
Texto Anterior: Obra defende biomassa como alternativa a petróleo Próximo Texto: Televisão: Novo ministro quer impor horário às TVs Índice
|