São Paulo, sexta-feira, 11 de maio de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Noel Rosa, 70 anos depois

O brilho era autônomo, tanto na música como na letra, mas ele não rejeitava parcerias

EM ARTIGO sobre a música de Johann Sebastian Bach, publicado nos anos 60, Otto Maria Carpeaux disse que o clássico é o popular que atravessa o tempo. E ninguém tinha sido mais popular do que Bach. Outros autores hoje considerados clássicos foram populares em sua época, e o exemplo de Mozart é obrigatório.
A citação de Bach e Mozart pode parecer exagerada quando o assunto é um compositor popular dos anos 30, carioca, nascido em Vila Isabel, morto há 70 anos e que hoje integra o nosso patrimônio cultural. Como em qualquer manifestação da arte, após um período de grande popularidade, cumpriu uma espécie de limbo, que em alguns casos durou dois séculos, como ocorreu a William Shakespeare.
O exagero parece continuar: Bach, Mozart e agora Shakespeare. Mas o assunto é Noel Medeiros Rosa, que foi popular nos sete ou oito anos que durou sua produção, ficando na nostalgia de alguns de seus contemporâneos, até que fosse redescoberto por um álbum gravado por Aracy de Almeida, na década de 50, se não me engano.
Nunca foi esquecido completamente, mas foram necessários uns 20 anos para que fosse reconhecido como um dos maiores compositores de nosso panteão artístico. Sua obra, sozinha, foi comparada à influência da Semana de Arte Moderna de 1922 na literatura e nas artes plásticas. Freqüentou todos os gêneros da música do povo: o samba, a marchinha, a embolada, a marcha rancho, cuja maior expressão continua sendo "As Pastorinhas", com letra de Braguinha.
Seu brilho era autônomo, tanto na música como na letra, mas não rejeitava parcerias que complementavam sua obra, bastando citar Vadico, que musicou algumas de suas melhores letras, Heitor dos Prazeres e outros.
Os entendidos dirão que Noel nunca foi esquecido, negando os 20 anos em que permaneceu na memória e no carinho de poucos. Citarei um detalhe para mostrar como a popularidade de Noel sofreu o hiato de alguns anos.
Quando Rubem Braga escreveu uma crônica famosa, dizendo "modéstia à parte, eu sou de Cachoeiro do Itapemirim", ninguém se lembrou de confrontar a modéstia do velho Braga com um dos maiores sambas de Noel, em que ele diz, "Modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila".
Certamente, foi nas letras de suas produções que Noel se ergueu à condição de gênio literário, mais cronista do que poeta, embora magnífico em ambos os gêneros. Contemporâneo dele, Orestes Barbosa dominou o verso romântico, cultivando um simbolismo luxuoso, digno de qualquer antologia. Sem desprezar a produção romântica, Noel foi e continua (embora prolongado por Chico Buarque) como o cronista das coisas nossas, "o samba, a prontidão e outras bossas são coisas nossas, muito nossas".
A riqueza de seu vocabulário acompanha a força de suas rimas, rimas riquíssimas, como no caso de "Com que Roupa", em que há a seguinte estrofe: "Eu hoje estou pulando como um sapo pra ver se escapo desta praga de urubu, já estou coberto de farrapo eu vou acabar ficando nu, meu terno já virou estopa e eu pergunto com que roupa, com que roupa eu vou ao samba que você me convidou".
Ele cantou o joão-ninguém, nem velho nem moço, que vive sem ter vintém, mas vive a fumar charuto e nunca teve opinião. Num dos poemas mais líricos da poesia brasileira ("Três Apitos"), ele lembra a fábrica de tecidos instalada em sua Vila Isabel: "Você que atende ao apito de uma chaminé de barro porque não atende... [à] buzina do meu carro; quando a fábrica apita, faz reclame de você".
"Último Desejo" tem uma jóia que lembra Manuel Bandeira: "Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto, que meu lar é um botequim, que eu arruinei sua vida, que eu não mereço a comida que você pagou pra mim". Ou esta outra jóia: "Não posso mudar minha massa de sangue, você pode crer, palmeira do mangue não vive na areia de Copacabana".
Hoje, Noel Rosa é reconhecido como um dos maiores compositores de todos os tempos, mas seu público não está nos escalões mais populares. É um autor erudito, consumido e interpretado pelas cultas gentes. O povão que se encantava com sua música e versos nos anos 30 mudou de gosto, absorvendo a produção heterogênea e paradoxalmente monótona de novos temas e ritmos.
Noel Rosa tornou-se um clássico, pede tempo e reflexão para ser compreendido e amado.


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