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CARLOS HEITOR CONY
Noel Rosa, 70 anos depois
O brilho era autônomo, tanto na música como na letra, mas ele não rejeitava parcerias
EM ARTIGO sobre a música de
Johann Sebastian Bach, publicado nos anos 60, Otto Maria Carpeaux disse que o clássico é o
popular que atravessa o tempo. E
ninguém tinha sido mais popular do
que Bach. Outros autores hoje considerados clássicos foram populares
em sua época, e o exemplo de Mozart é obrigatório.
A citação de Bach e Mozart pode
parecer exagerada quando o assunto
é um compositor popular dos anos
30, carioca, nascido em Vila Isabel,
morto há 70 anos e que hoje integra
o nosso patrimônio cultural. Como
em qualquer manifestação da arte,
após um período de grande popularidade, cumpriu uma espécie de limbo, que em alguns casos durou dois
séculos, como ocorreu a William
Shakespeare.
O exagero parece continuar: Bach,
Mozart e agora Shakespeare. Mas o
assunto é Noel Medeiros Rosa, que
foi popular nos sete ou oito anos que
durou sua produção, ficando na nostalgia de alguns de seus contemporâneos, até que fosse redescoberto
por um álbum gravado por Aracy de
Almeida, na década de 50, se não me
engano.
Nunca foi esquecido completamente, mas foram necessários uns
20 anos para que fosse reconhecido
como um dos maiores compositores
de nosso panteão artístico. Sua obra,
sozinha, foi comparada à influência
da Semana de Arte Moderna de 1922
na literatura e nas artes plásticas.
Freqüentou todos os gêneros da
música do povo: o samba, a marchinha, a embolada, a marcha rancho,
cuja maior expressão continua sendo "As Pastorinhas", com letra de
Braguinha.
Seu brilho era autônomo, tanto na
música como na letra, mas não rejeitava parcerias que complementavam sua obra, bastando citar Vadico,
que musicou algumas de suas melhores letras, Heitor dos Prazeres e
outros.
Os entendidos dirão que Noel
nunca foi esquecido, negando os 20
anos em que permaneceu na memória e no carinho de poucos. Citarei
um detalhe para mostrar como a popularidade de Noel sofreu o hiato de
alguns anos.
Quando Rubem Braga escreveu
uma crônica famosa, dizendo "modéstia à parte, eu sou de Cachoeiro
do Itapemirim", ninguém se lembrou de confrontar a modéstia do
velho Braga com um dos maiores
sambas de Noel, em que ele diz,
"Modéstia à parte, meus senhores,
eu sou da Vila".
Certamente, foi nas letras de suas
produções que Noel se ergueu à condição de gênio literário, mais cronista do que poeta, embora magnífico
em ambos os gêneros. Contemporâneo dele, Orestes Barbosa dominou
o verso romântico, cultivando um
simbolismo luxuoso, digno de qualquer antologia. Sem desprezar a
produção romântica, Noel foi e continua (embora prolongado por Chico Buarque) como o cronista das
coisas nossas, "o samba, a prontidão
e outras bossas são coisas nossas,
muito nossas".
A riqueza de seu vocabulário
acompanha a força de suas rimas, rimas riquíssimas, como no caso de
"Com que Roupa", em que há a seguinte estrofe: "Eu hoje estou pulando como um sapo pra ver se escapo desta praga de urubu, já estou coberto de farrapo eu vou acabar ficando nu, meu terno já virou estopa e eu
pergunto com que roupa, com que
roupa eu vou ao samba que você me
convidou".
Ele cantou o joão-ninguém, nem
velho nem moço, que vive sem ter
vintém, mas vive a fumar charuto e
nunca teve opinião. Num dos poemas mais líricos da poesia brasileira
("Três Apitos"), ele lembra a fábrica
de tecidos instalada em sua Vila Isabel: "Você que atende ao apito de
uma chaminé de barro porque não
atende... [à] buzina do meu carro;
quando a fábrica apita, faz reclame
de você".
"Último Desejo" tem uma jóia que
lembra Manuel Bandeira: "Às pessoas que eu detesto, diga sempre que
eu não presto, que meu lar é um botequim, que eu arruinei sua vida,
que eu não mereço a comida que você pagou pra mim". Ou esta outra
jóia: "Não posso mudar minha massa de sangue, você pode crer, palmeira do mangue não vive na areia
de Copacabana".
Hoje, Noel Rosa é reconhecido como um dos maiores compositores
de todos os tempos, mas seu público
não está nos escalões mais populares. É um autor erudito, consumido
e interpretado pelas cultas gentes. O
povão que se encantava com sua
música e versos nos anos 30 mudou
de gosto, absorvendo a produção heterogênea e paradoxalmente monótona de novos temas e ritmos.
Noel Rosa tornou-se um clássico,
pede tempo e reflexão para ser compreendido e amado.
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