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LITERATURA
"Ulisses", clássico de James Joyce, ganha tradução de Bernardina Pinheiro e é lançado para o 101º Bloomsday
Leopold Bloom dá novos passos em português
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
"Está vendo aquele homem que
acaba de saltar do bonde? Imagine se ele tivesse sido atropelado,
como se tornaria subitamente significativo cada um de seus atos e
gestos. E também seus pensamentos, e as mil complexidades
de sua mente, para todos que os
conhecessem. Essa é a idéia de
significação das coisas triviais que
quero dar aos dois ou três miseráveis que talvez venham a me ler."
Em 1904, era o implicante irmão
Stanislaus quem ouvia as explicações de James Joyce, caminhando
ao seu lado pelas ruas de Dublin.
Naquele momento, nem se configurara, nas complexidades da
mente do irlandês, a idéia de escrever "Ulisses". Daria início à extenuante tarefa dez anos mais tarde, só a concluindo em 1922.
Não foram dois nem três os que
se atreveram a atravessar as 18 horas e mais de 800 páginas que surgiram daquela intenção. "Ulisses"
ganhou o mundo e marcou em
definitivo a história da literatura,
revolucionando forma e linguagem. Agora, 101 anos depois do
longo dia 16 de junho de 1904 que
o irlandês inventou para seu personagem Leopold Bloom, ganha
nova tradução ao português, por
Bernardina Pinheiro -antes, só
tinha tradução de Antônio
Houaiss, de 1966, e do português
João Palma-Ferreira. Ganhará,
também, no próximo dia 16, mais
uma série de eventos pelo que ficou conhecido como Bloomsday.
Pinheiro, 83, tardou nesse trabalho os mesmos sete anos que
Joyce levou para escrevê-lo, e já
havia traduzido "O Retrato do Artista Quando Jovem". Se pensa
em partir para "Finnegans Wake", o último de Joyce?
Folha - E então?
Bernardina Pinheiro - Ah, não.
Não me atreveria. Seriam mais
quantos anos de vida? Eu já estou
um pouco velhinha para isso.
Folha - Quais as principais dificuldades de traduzir Joyce?
Pinheiro - Muitas, porque é um
escritor genial. As maiores são os
"puns", os trocadilhos, que são
uma coisa muito própria de cada
língua e de impossível adaptação.
Tive que inventar ou contornar
usando outros elementos, como a
aliteração, comum na língua inglesa, procurando manter a graça
da brincadeira. Outros desafios
foram manter a musicalidade e a
variedade de estilos que ele usa.
Folha - Por tudo isso, traduzir
Ulisses é criar uma nova obra?
Pinheiro - Não acredito que seja.
Procurei ficar o mais fiel possível
à linguagem, às expressões usadas
por ele. Usar dentro do português
tudo aquilo que possa representar
o estilo dele. Não acredito muito
em criar uma nova linguagem em
torno de um gênio, entende? Porque nunca se chega aos pés dele.
Folha - Como foi o processo de
tradução?
Pinheiro - Comecei pelo último
capítulo, antes de 1998. Nem tinha
passado pela minha cabeça traduzir o livro inteiro, mas fiquei tão
apaixonada por aquele monólogo
da Molly Bloom que tive que continuar. É tão extraordinário que
tenha sido escrito por um homem! É impressionante que ele
tenha uma penetração tão grande
na alma feminina. Ele é como
Chico Buarque. Depois, quando
decidi traduzir inteiro, comecei
pelo princípio, mas já tendo o último capítulo pronto.
Folha - Por que lhe pareceu necessária uma nova tradução? Quais
eram os problemas da de Houaiss?
Pinheiro - Prefiro não fazer comparações. Nem li a do Antônio
Houaiss, justamente para não me
deixar influenciar. Cada um vê a
tradução à sua maneira. Eu queria
traduzir dentro da linguagem do
Joyce, usar a linguagem coloquial
que ele usou o tempo todo. Porque Joyce não acreditava na linguagem dos vitorianos, por
exemplo, ou dos românticos. Ele
queria usar uma linguagem realista. Isso ele disse a um rapaz com
quem manteve conversas literárias, Arthur Power.
Folha - "Ulisses" deve ser lido
sempre como paródia da Odisséia?
Pinheiro - Ele usou o poema de
Homero como estrutura, mas é
muito mais do que isso. É quase
enciclopédico, abrange muita coisa em termos filosóficos, religiosos, políticos, científicos. Usou
como estrutura e foi infiel. É o que
Linda Hutcheon diz na sua teoria
da paródia, que se trata de uma
inversão irônica. Joyce faz isso o
tempo todo. Você vê que a Penélope do Homero é um protótipo
da fidelidade conjugal. E a Molly
vai trair o Bloom naquele dia. Na
Odisséia, é o filho em busca do
pai. Em "Ulisses", Bloom perdeu
seu filho com 11 dias de vida e está
tentando encontrar em Stephen o
filho que ele desejava ter. São inúmeras as inversões.
Folha - Quanto do "Ulisses" se
perde para quem não conhece Dublin, para quem não é irlandês?
Pinheiro - "Ulisses" é simultaneamente universal e local. É universal como comédia humana.
Durante esse dia, acontece tudo
da vida de um ser humano: nascimento, morte, alegria, frustração,
prazer, menstruação, masturbação. Traição, tudo. E ao mesmo
tempo é muito regional, pela presença viva da política irlandesa e
da maneira de pensar do irlandês.
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