São Paulo, sábado, 11 de junho de 2005

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LITERATURA

"Ulisses", clássico de James Joyce, ganha tradução de Bernardina Pinheiro e é lançado para o 101º Bloomsday

Leopold Bloom dá novos passos em português

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Está vendo aquele homem que acaba de saltar do bonde? Imagine se ele tivesse sido atropelado, como se tornaria subitamente significativo cada um de seus atos e gestos. E também seus pensamentos, e as mil complexidades de sua mente, para todos que os conhecessem. Essa é a idéia de significação das coisas triviais que quero dar aos dois ou três miseráveis que talvez venham a me ler."
Em 1904, era o implicante irmão Stanislaus quem ouvia as explicações de James Joyce, caminhando ao seu lado pelas ruas de Dublin. Naquele momento, nem se configurara, nas complexidades da mente do irlandês, a idéia de escrever "Ulisses". Daria início à extenuante tarefa dez anos mais tarde, só a concluindo em 1922.
Não foram dois nem três os que se atreveram a atravessar as 18 horas e mais de 800 páginas que surgiram daquela intenção. "Ulisses" ganhou o mundo e marcou em definitivo a história da literatura, revolucionando forma e linguagem. Agora, 101 anos depois do longo dia 16 de junho de 1904 que o irlandês inventou para seu personagem Leopold Bloom, ganha nova tradução ao português, por Bernardina Pinheiro -antes, só tinha tradução de Antônio Houaiss, de 1966, e do português João Palma-Ferreira. Ganhará, também, no próximo dia 16, mais uma série de eventos pelo que ficou conhecido como Bloomsday.
Pinheiro, 83, tardou nesse trabalho os mesmos sete anos que Joyce levou para escrevê-lo, e já havia traduzido "O Retrato do Artista Quando Jovem". Se pensa em partir para "Finnegans Wake", o último de Joyce?

 

Folha - E então?
Bernardina Pinheiro -
Ah, não. Não me atreveria. Seriam mais quantos anos de vida? Eu já estou um pouco velhinha para isso.

Folha - Quais as principais dificuldades de traduzir Joyce?
Pinheiro -
Muitas, porque é um escritor genial. As maiores são os "puns", os trocadilhos, que são uma coisa muito própria de cada língua e de impossível adaptação. Tive que inventar ou contornar usando outros elementos, como a aliteração, comum na língua inglesa, procurando manter a graça da brincadeira. Outros desafios foram manter a musicalidade e a variedade de estilos que ele usa.

Folha - Por tudo isso, traduzir Ulisses é criar uma nova obra?
Pinheiro -
Não acredito que seja. Procurei ficar o mais fiel possível à linguagem, às expressões usadas por ele. Usar dentro do português tudo aquilo que possa representar o estilo dele. Não acredito muito em criar uma nova linguagem em torno de um gênio, entende? Porque nunca se chega aos pés dele.

Folha - Como foi o processo de tradução?
Pinheiro -
Comecei pelo último capítulo, antes de 1998. Nem tinha passado pela minha cabeça traduzir o livro inteiro, mas fiquei tão apaixonada por aquele monólogo da Molly Bloom que tive que continuar. É tão extraordinário que tenha sido escrito por um homem! É impressionante que ele tenha uma penetração tão grande na alma feminina. Ele é como Chico Buarque. Depois, quando decidi traduzir inteiro, comecei pelo princípio, mas já tendo o último capítulo pronto.

Folha - Por que lhe pareceu necessária uma nova tradução? Quais eram os problemas da de Houaiss?
Pinheiro -
Prefiro não fazer comparações. Nem li a do Antônio Houaiss, justamente para não me deixar influenciar. Cada um vê a tradução à sua maneira. Eu queria traduzir dentro da linguagem do Joyce, usar a linguagem coloquial que ele usou o tempo todo. Porque Joyce não acreditava na linguagem dos vitorianos, por exemplo, ou dos românticos. Ele queria usar uma linguagem realista. Isso ele disse a um rapaz com quem manteve conversas literárias, Arthur Power.

Folha - "Ulisses" deve ser lido sempre como paródia da Odisséia?
Pinheiro -
Ele usou o poema de Homero como estrutura, mas é muito mais do que isso. É quase enciclopédico, abrange muita coisa em termos filosóficos, religiosos, políticos, científicos. Usou como estrutura e foi infiel. É o que Linda Hutcheon diz na sua teoria da paródia, que se trata de uma inversão irônica. Joyce faz isso o tempo todo. Você vê que a Penélope do Homero é um protótipo da fidelidade conjugal. E a Molly vai trair o Bloom naquele dia. Na Odisséia, é o filho em busca do pai. Em "Ulisses", Bloom perdeu seu filho com 11 dias de vida e está tentando encontrar em Stephen o filho que ele desejava ter. São inúmeras as inversões.

Folha - Quanto do "Ulisses" se perde para quem não conhece Dublin, para quem não é irlandês?
Pinheiro -
"Ulisses" é simultaneamente universal e local. É universal como comédia humana. Durante esse dia, acontece tudo da vida de um ser humano: nascimento, morte, alegria, frustração, prazer, menstruação, masturbação. Traição, tudo. E ao mesmo tempo é muito regional, pela presença viva da política irlandesa e da maneira de pensar do irlandês.


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