São Paulo, Sexta-feira, 11 de Junho de 1999
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NETVOX
O maior comercial de óculos escuros do mundo

MARIA ERCILIA
Editora de Internet

O que é "Matrix"? Ficção científica sombria, profética, inteligente?
Não. "Matrix" é uma coleção de óculos escuros, atores fazendo biquinho, pedaços de filmes alheios, diálogos pretensiosos e embaraçosas poses de kung fu (se você não viu o filme, é melhor parar por aqui; este texto pode estragar algumas surpresas).
Juro que tentei ver algo mais que merchandising, efeitos especiais e afetação em "Matrix". Afinal, a idéia do filme é muito interessante: o mundo que você vê é um software, controlado por máquinas que tomaram o lugar dos homens -e de Deus. Aquilo que chamamos de realidade seria um ópio eletrônico, gerado para manter a ilusão de controle dos seres humanos, escravizados às máquinas.
Em alguma reunião de estúdio, porém, a boa idéia deve ter se perdido no meio de um excesso de efeitos especiais, casaquinhos de couro, cenários retrô e todas aquelas regras de filme americano: tem que ter final feliz, mocinho bonito, cena de ação com carro, prédio explodindo e helicóptero, confronto final entre bandido e bonzinho, beijo apaixonado na mocinha -a lista completa deve estar pendurada em todas as salas de reunião de Hollywood.
Só esqueceram o roteiro. Os diálogos são pretensiosos e carregados de obviedades ("Imagine acordar de um sonho que você sonhou a vida inteira. Como saber o que é sonho e o que é realidade?"). Lawrence Fishburne, no papel de Morpheus, o super-hacker que tira Keanu Reeves de seu sonho eletrônico, é obrigado a passar metade do filme explicando o enredo do próprio. A platéia acaba entendendo o que se passa -já Keanu Reeves, apesar de ouvir atentamente as explicações do mestre, continua com cara de quem não sabe onde está.
E as citações. A sequência inicial, com a bonitona Trinity, lembra a cena do andróide perseguido por Harrison Ford em "Blade Runner". A "ressurreição" de Neo (Keanu Reeves) lembra "Alien 4". A história lembra um pouco "Os 12 Macacos". Os "agentes" lembram "Terminator". "Matrix" me lembrou até de filmes que não vi: "ExistenZ", de Cronenberg, também tem um mundo de realidade virtual onde as pessoas se conectam pelo umbigo (em "Matrix", é pela nuca). Mas uma referência bem-encaixada numa obra é uma homenagem que se presta aos antecessores e uma maneira de dar um sentido novo a determinado elemento narrativo. Em "Matrix", as citações estão mais próximas do plágio explícito. Ficou uma colcha de retalhos de filmes diferentes. O interrogatório de Neo parece um pedaço de filme de Cronenberg, claustrofóbico e surrealista. O treinamento de kung fu já tem um clima meio new age, com aquela mistura de misticismo e artes marciais. A batalha de helicóptero lembra qualquer filme de ação genérico com Mel Gibson.
Mesmo esteticamente, "Matrix" já nasceu velho. Ninguém aguenta mais sobretudo preto, roupa de couro e cyberpunks escondidos em corredores escuros. "Blade Runner" renovou o alfabeto visual dos filmes de ficção científica. "Matrix" dá no máximo uma reembaralhada nele.
O excelente ator australiano Hugo Weaving ("A Prova" e "Priscila") é o único que não perde o rumo nessa salada. O agente Smith é uma presença impressionante, com sua voz e gestos de máquina. "Matrix" tem ainda um único momento de humor: quando o oráculo, uma senhora simpática que assa biscoitos, olha atentamente para Keanu Reeves e diz: "Você é bonitinho. Mas não muito inteligente...".
Cronenberg comentou numa entrevista o show-off de efeitos especiais de "Matrix": "Esse tipo de coisa envelhece muito rápido. Minha equipe de efeitos especiais certamente me ofereceu este tipo de tecnologia dos comerciais da Gap, em que tudo é congelado no ar. Mas para mim esse visual não serve".
A grande ironia de "Matrix" é involuntária: já existe um simulacro da realidade, feito de software, cada vez mais controlado por máquinas, e que submete os seres humanos a regras ridículas -ele se chama Hollywood. "Guerra nas Estrelas - Episódio 1" é o estado-de-arte desse novo mundo: os pobres dos atores são obrigados a contracenar com bonecos 3-D quase o tempo todo, em cenários artificiais.
E os óculos? Em "Truman Show", todos os objetos do cenário estavam à venda. Em "Matrix", você pode adquirir os famigerados óculos escuros dos protagonistas. Ao entrar em www.whatisthematrix.com, o visitante é saudado: "Se está interessado em comprar os óculos de "Matrix", coloque aqui seu e-mail".

Espaço público
Marcos Novak, arquiteto que desenvolveu uma teoria da Internet como espaço público, vai dar uma palestra sobre o assunto no próximo dia 16, em São Paulo (no Sesc Belenzinho, a convite do Arte/Cidade e do Alumni). Novak, criador do conceito de transarquitetura, também é artista e professor da Universidade da Califórnia.



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