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São Paulo, sexta-feira, 11 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A verdadeira história do verdadeiro filho da p...

Foi sem querer. Juro que foi sem querer. Talvez estivesse distraído, embora nunca me distraia quando estou ao volante. Mas, sinceramente, não foi molecagem, não sou disso, embora tenha motivos bastantes para atirar lama nos outros, tenho um pacto com a lama, um pacto antigo, que eu não preciso renovar, pois está sempre em vigor.
A verdade é que não vi a poça de lama, a água da última chuva que inundou a cidade. Fui desviar de algum buraco no asfalto, a roda dianteira do carro passou pela poça, atirou lama num sujeito que estava na calçada. Um incidente banal. Repito: foi sem querer. Mas o sujeito decidiu engrossar. Deu um grito que me pareceu do tamanho do universo, de todas as galáxias, dos buracos negros que absorvem energia e matéria:
- Filho da puta!
Um insulto também banal, todo mundo, mais cedo ou mais tarde, por isso ou aquilo, é chamado com razão ou sem razão de filho da puta. Mas comigo a coisa é diferente. Eu sou realmente um filho da puta, um padrão do verdadeiro filho da puta. Como naquele samba do Ary Barroso, "Na Baixa do Sapateiro", vou contar:
Minha mãe. Amava-a? Tinha ciúmes dela? Ou simplesmente a detestava? Essas e outras perguntas permanecem sem resposta em meus subterrâneos de sombra. Talvez a amasse ou tivesse ciúmes. Talvez nem uma coisa nem outra. Sabia que se sacrificara por mim, sacrifício a que se submetera mecanicamente, por circunstâncias que lhe impunham o desespero de conservar-me vivo a seu lado, para sofrer a mesma fome e a mesma vergonha.
Eu lhe fora um estorvo, um intransponível trambolho. Minha concepção marcou-lhe a vida, impedindo-a de ser livre, uma liberdade que talvez ela própria não desejasse, sabendo de antemão que são poucas e más as perspectivas das mulheres de sua condição e ofício.
Sem ninguém a quem recorrer, ela não teve alternativa senão parir o filho que eventual descuido e crônica falta de dinheiro geraram sem sabor. Nos momentos de maior desespero, com palavras cruas, costumava dizer que eu era filho da miséria, a miséria geral de sua vida e da vida em geral, e não de um homem, que ela nunca poderia identificar.
Sei que devo minha centelha inicial a uns poucos centavos que faltaram em sua bolsa. Meu natural destino seria o esgoto do dr. Cabral, o célebre dr. Cabral, que esvaziava os úteros das mulheres da zona, localizada naquele tempo no Mangue, com suas palmeiras imperiais e suas putas internacionais. Citei acima o Ary Barroso, cito agora o Noel Rosa, "ninguém pode mudar minha massa de sangue, você pode crer, palmeira do Mangue não vive na areia de Copacabana".
Minha mãe era freguesa anual. Mesmo assim, não obteve fiado. Se houvesse o fiado, eu teria me juntado a dezenas de irmãozinhos no usufruto do seio do senhor. Mas dr. Cabral tinha experiência para não fiar a mulheres assim, da mesma forma que elas não fiam a seus clientes. Essas coisas são pagas à vista. Homem insensível a qualquer tentação da carne ou do espírito, não adiantava tentá-lo a concupiscência ou a caridade, inutilidades que não possuía.
Desde tenro, eu não ignorava os acasos que me propiciaram vir a este mundo. Nunca me lamentei. Qualquer alternativa me é indiferente; se tivesse que escolher entre ir para a paz do Senhor espatifado pela cureta do dr. Cabral, ou vir me espatifar aqui fora, à ação da cureta da vida, tiraria cara ou coroa.
Minha mãe teve um parto difícil. Obrigada a passar dois meses no Asilo das Mães Solteiras. Fui recolhido ao Abrigo da Boa Vontade, desorganizada instituição que não sei se ainda hoje existe.
Estranhas ocorrências quando minha mãe foi buscar o filho que mal vira por ocasião do parto. E, por Júpiter! Não aceitou o pavoroso menino que lhe botaram no colo. Protestou em altos brados, seu filho não era aquele, tivera uma linda criança e não a minhoca cascuda que lhe sugava os seios num prenúncio da fome que tanto lhe custaria abrandar.
Ameaçou ir ao cardeal, ao presidente da República, aos diabos e às macumbas. Mas a direção do abrigo foi inflexível. Eu era eu mesmo. Havia a papeleta de inscrição; os termos eram claros; as fichas, formais; os regulamentos, severos. Tratava-se de uma criança do sexo masculino, nascida a tantos, recolhida a tantos, com tantos quilos e centímetros, nascida de fulana e de ignoto fulano. Tudo devidamente selado de acordo com as leis em vigor.
Apesar da papeleta, dos regulamentos, das leis em vigor, minha mãe estrilou o que pode. Empurraram-na para a rua, o filho no colo.
E cá estou eu, filho de ignoto fulano.
Como se não bastassem as dúvidas a que um homem decente se permite, tenha cá esta outra mais profunda e estúpida: a de não ser eu mesmo. Em tempos idos, era comum a troca de crianças entre a nobreza. Uma dinastia real podia vir abaixo por causa de um nascimento. Tronos e feudos desmoronavam, chegavam a castrar meninos para obedecer aos esquemas de casamentos.
Não foi essa a minha situação e seria exagero da vida castrar-me tão cedo assim. Para herdar vergonha e fome, qualquer pai me serviria. Eu seria para sempre o filho de minha mãe, o filho da puta.


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