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CARLOS HEITOR CONY
A verdadeira história do verdadeiro filho da p...
Foi sem querer. Juro que foi
sem querer. Talvez estivesse
distraído, embora nunca me distraia quando estou ao volante.
Mas, sinceramente, não foi molecagem, não sou disso, embora tenha motivos bastantes para atirar lama nos outros, tenho um
pacto com a lama, um pacto antigo, que eu não preciso renovar,
pois está sempre em vigor.
A verdade é que não vi a poça
de lama, a água da última chuva
que inundou a cidade. Fui desviar de algum buraco no asfalto, a
roda dianteira do carro passou
pela poça, atirou lama num sujeito que estava na calçada. Um incidente banal. Repito: foi sem
querer. Mas o sujeito decidiu engrossar. Deu um grito que me pareceu do tamanho do universo, de
todas as galáxias, dos buracos negros que absorvem energia e matéria:
- Filho da puta!
Um insulto também banal, todo
mundo, mais cedo ou mais tarde,
por isso ou aquilo, é chamado
com razão ou sem razão de filho
da puta. Mas comigo a coisa é diferente. Eu sou realmente um filho da puta, um padrão do verdadeiro filho da puta. Como naquele samba do Ary Barroso, "Na
Baixa do Sapateiro", vou contar:
Minha mãe. Amava-a? Tinha
ciúmes dela? Ou simplesmente a
detestava? Essas e outras perguntas permanecem sem resposta em
meus subterrâneos de sombra.
Talvez a amasse ou tivesse ciúmes. Talvez nem uma coisa nem
outra. Sabia que se sacrificara por
mim, sacrifício a que se submetera mecanicamente, por circunstâncias que lhe impunham o desespero de conservar-me vivo a
seu lado, para sofrer a mesma fome e a mesma vergonha.
Eu lhe fora um estorvo, um intransponível trambolho. Minha
concepção marcou-lhe a vida, impedindo-a de ser livre, uma liberdade que talvez ela própria não
desejasse, sabendo de antemão
que são poucas e más as perspectivas das mulheres de sua condição
e ofício.
Sem ninguém a quem recorrer,
ela não teve alternativa senão parir o filho que eventual descuido e
crônica falta de dinheiro geraram
sem sabor. Nos momentos de
maior desespero, com palavras
cruas, costumava dizer que eu era
filho da miséria, a miséria geral
de sua vida e da vida em geral, e
não de um homem, que ela nunca
poderia identificar.
Sei que devo minha centelha
inicial a uns poucos centavos que
faltaram em sua bolsa. Meu natural destino seria o esgoto do dr.
Cabral, o célebre dr. Cabral, que
esvaziava os úteros das mulheres
da zona, localizada naquele tempo no Mangue, com suas palmeiras imperiais e suas putas internacionais. Citei acima o Ary Barroso, cito agora o Noel Rosa, "ninguém pode mudar minha massa
de sangue, você pode crer, palmeira do Mangue não vive na areia
de Copacabana".
Minha mãe era freguesa anual.
Mesmo assim, não obteve fiado.
Se houvesse o fiado, eu teria me
juntado a dezenas de irmãozinhos no usufruto do seio do senhor. Mas dr. Cabral tinha experiência para não fiar a mulheres
assim, da mesma forma que elas
não fiam a seus clientes. Essas coisas são pagas à vista. Homem insensível a qualquer tentação da
carne ou do espírito, não adiantava tentá-lo a concupiscência ou a
caridade, inutilidades que não
possuía.
Desde tenro, eu não ignorava os
acasos que me propiciaram vir a
este mundo. Nunca me lamentei.
Qualquer alternativa me é indiferente; se tivesse que escolher entre
ir para a paz do Senhor espatifado pela cureta do dr. Cabral, ou
vir me espatifar aqui fora, à ação
da cureta da vida, tiraria cara ou
coroa.
Minha mãe teve um parto difícil. Obrigada a passar dois meses
no Asilo das Mães Solteiras. Fui
recolhido ao Abrigo da Boa Vontade, desorganizada instituição
que não sei se ainda hoje existe.
Estranhas ocorrências quando
minha mãe foi buscar o filho que
mal vira por ocasião do parto. E,
por Júpiter! Não aceitou o pavoroso menino que lhe botaram no
colo. Protestou em altos brados,
seu filho não era aquele, tivera
uma linda criança e não a minhoca cascuda que lhe sugava os
seios num prenúncio da fome que
tanto lhe custaria abrandar.
Ameaçou ir ao cardeal, ao presidente da República, aos diabos e
às macumbas. Mas a direção do
abrigo foi inflexível. Eu era eu
mesmo. Havia a papeleta de inscrição; os termos eram claros; as
fichas, formais; os regulamentos,
severos. Tratava-se de uma criança do sexo masculino, nascida a
tantos, recolhida a tantos, com
tantos quilos e centímetros, nascida de fulana e de ignoto fulano.
Tudo devidamente selado de
acordo com as leis em vigor.
Apesar da papeleta, dos regulamentos, das leis em vigor, minha
mãe estrilou o que pode. Empurraram-na para a rua, o filho no
colo.
E cá estou eu, filho de ignoto fulano.
Como se não bastassem as dúvidas a que um homem decente se
permite, tenha cá esta outra mais
profunda e estúpida: a de não ser
eu mesmo. Em tempos idos, era
comum a troca de crianças entre
a nobreza. Uma dinastia real podia vir abaixo por causa de um
nascimento. Tronos e feudos desmoronavam, chegavam a castrar
meninos para obedecer aos esquemas de casamentos.
Não foi essa a minha situação e
seria exagero da vida castrar-me
tão cedo assim. Para herdar vergonha e fome, qualquer pai me
serviria. Eu seria para sempre o filho de minha mãe, o filho da puta.
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