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MARCELO COELHO
Eu também tenho medo dela
Você acha que ela é "fofinha"? Então não leia este artigo. Ah, mas você não deve achar
que ela é fofinha. Coitada! Ela
pertence a um pesadelo e não sabe
disso. Estou falando da menina
que faz o anúncio da Embratel
com a Ana Paula Arósio.
No mundo real, ela se chama
Rafaela e tem quatro anos. Sobre
essa criança seria abusivo fazer
qualquer comentário. Já a personagem que criaram... Quanta diferença! Ou melhor, quanta semelhança! Valeria ser estudada como um caso marcante de teratologia publicitária.
Parece que o comercial já saiu
de cartaz. Não sei, quase não vejo
televisão. Acontece que, durante
as férias, fiquei mais tempo do
que devia freqüentando a internet -e no site do Orkut centenas
de pessoas se organizaram em comunidades para falar mal da pequena sósia da Ana Paula.
Uma comunidade se chama
"Tenho Medo da Anã Arósio" -e
as opiniões que ali se registram
são às vezes bem pesadas. Outra,
mais "light", é a "Tenho Medo da
Mini-Arósio". Discute-se todo tipo de hipótese: a menina é um robô, a menina tem olhos com raio
laser, ela é noiva do Chuck, o brinquedo assassino dos filmes de terror, e pode ser ainda sobrinha do
Fofão -outra lembrança sinistra
na vida de quem passou a infância vendo programas trash na TV.
A comunidade dos apavorados
com a pequena Arósio logo diversificou seus interesses, explorando
novos medos, novos fantasmas,
novos monstros. Michael Jackson
é o campeão, pelo que pude ver.
Mas também não foram poucos
os que mencionaram ter medo da
Elza Soares ou do Clodovil. Sem
contar algumas fobias mais específicas, como a de ficar preso num
elevador com Arnaldo Antunes,
ou a de encarar os pêlos do Tony
Ramos.
Em toda essa linha de associações bizarras, haveria provavelmente uma origem comum. Sem
dúvida, o pavor que se confessa é
o de algum tipo de abuso sexual.
O que faz horrível a pequena Arósio é o batom, a maquiagem, o cabelo arranjado num instituto de
beleza. Penso mais numa mulher
adulta miniaturizada do que numa boneca dotada de vida própria.
Natural que a figura de Michael
Jackson fosse a primeira a aparecer nesse contexto. Não só pelas
acusações de pedofilia que cercam
o ídolo pop mas também por toda
a quantidade de manipulação
tecnológica que se aplicou sobre
sua aparência. A suposta pedofilia de Jackson é também um narcisismo, uma autopedofilia.
Ora, o internauta que especula
sobre a Ana Paula Arósio em miniatura talvez se entregue à sensação de miniaturizar-se a si mesmo; brinca de criança, sem dúvida, ao dizer que fulano ou sicrano
o amedrontam. Entre as comunidades de maior sucesso no Orkut
estão as que discutem, de forma
bem-humorada, os "traumas de
infância" -vomitar na perua da
escolinha, fazer xixi na cama, esse
tipo de coisa.
Desconfio que o horror à sexualização precoce da menina Arósio
seja o horror à nossa própria regressão, à ameaça que pesa sobre
nós de não nos termos livrado totalmente da infância.
Os anúncios da Embratel vinham havia um bom tempo explorando as possibilidades da manipulação fisionômica da modelo.
Como no caso do garoto da Bom
Bril, Ana Paula Arósio se tornou
uma espécie de campo de provas,
de porquinho-da-índia (hum,
gostei dessa comparação) num laboratório fotográfico ou num estúdio de computação gráfica. Ela
já está há alguns anos fazendo o
anúncio da Embratel, e os publicitários tinham de imaginar variações em torno do tema: foi assim
que a fantasiaram de japonesa, de
espanhola, de esquimó ou coisa
parecida, para mostrar que as ligações internacionais tinham
baixado de preço.
Sem ter mais como variar sua
aparência, cuidaram então de reproduzi-la. Foi o erro fatal. Não é
fácil apreender com exatidão qual
era, afinal de contas, a campanha
do 21 -que tipo de oferta estava
sendo lançada naquele momento:
os descontos e promoções de empresas telefônicas não têm, de
qualquer modo, o dom de chamar
a minha atenção.
Pensei que a mini-Arósio fosse
alguma oferta de celular para
quem já tem o telefone fixo. Ou
uma advertência contra a clonagem de aparelhos. Depois fui investigar: o anúncio era para dizer
que, se você fizer uma ligação de
dois minutos, tem direito a um
minuto grátis. A mini-Arósio é
uma meia-Arósio, assim como
um é a metade de dois, formando
o número 21. Eureca!
A reprodução por cissiparidade,
a luz laboratorial, a alegria vibrátil e protozoária do anúncio então se explicam. Nada mais vulgar do que uma garota seminua
anunciando carros ou cervejas.
Os anúncios da Embratel com
Ana Paula Arósio sempre foram
de uma austeridade e assepsia a
toda prova. Talvez porque na frase "faz um 21" já houvesse algum
subentendido que me escapa.
O fato é que, se Xuxa, a rainha
dos baixinhos, engravidou com
requintes de puritanismo, a propaganda da Embratel representa
um passo adiante -a clonagem
da mulher adulta se revela como
contrapartida da sexualização
infantil.
Claro, a mistura de infância
com sexualização é a chave de toda propaganda: o que se presume,
quase sempre, é que o consumidor tenha o intelecto de uma
criança de cinco anos e o desejo
sexual de um adulto plenamente
desenvolvido. É de dar medo mesmo, com certeza.
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