São Paulo, terça-feira, 11 de agosto de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Vida e morte do homem perplexo


Raul Solnado elevou o cinema português acima da sua mediocridade habitual


ESTOU DE férias. Deitado ao sol, com um livro de aeroporto sobre a barriga. O empregado do bar aproxima-se. Comunica que tenho um telefonema à espera. Levanto-me, imaginando desgraças domésticas. Errei na segunda parte do presságio. A desgraça existe, sim, mas não é doméstica. É nacional. Morreu Raul Solnado.
Os portugueses sabem o que significa a perda de Raul Solnado. Um dos grandes atores e humoristas do teatro luso? Certíssimo. Mas não apenas do teatro. Se existe ator dramático que elevou o cinema português acima da sua mediocridade habitual, esse alguém é Raul Solnado.
Cito um só exemplo: em "Balada da Praia dos Cães", filme de José Fonseca e Costa baseado no livro de José Cardoso Pires (pessoalmente, o maior romancista português da segunda metade do século 20), Solnado é o solitário Elias, inspetor policial que carrega sobre os ombros uma tristeza existencial só concebível nos antigos anti-heróis do "film noir". Quem viu, não esquece. Quem viu, agradece.
Mas se os portugueses reconhecem a perda, os brasileiros também não escapam à orfandade. Na década de 60, Solnado foi figura grata no Brasil, onde conquistou o sucesso teatral e até televisivo que já trazia da terrinha. Para classificar o estilo peculiar de Solnado na comédia, os brasileiros até inventaram um belo epíteto: "o homem perplexo".
De fato. Olhando as gravações da época, "perplexidade" é o termo para um ator que surgia em palco, absolutamente só, disposto a narrar os seus monólogos, uma espécie de "stand-up comedy" antes do tempo. Um deles, intitulado "História da Guerra de 1908", é o relato pungente de um pobre diabo que vai para a guerra e, ao chegar lá, descobre que a guerra ainda está fechada. Na década de 60, com Portugal a combater em África, estas brincadeiras eram, simultaneamente, surreais e subversivas.
Desconfio que no Brasil o efeito era semelhante. Basta consultar os jornais da altura. Ou basta relembrar as palavras que o próprio Solnado me disse na última entrevista que concedeu, em março passado.
A última entrevista e, presumo, uma das mais longas: durante uma tarde inteira, com um vinho tinto que ele fez questão de partilhar com generosidade e sabedoria, houve tempo para tudo. Para relembrar o Brasil, uma espécie de segunda casa, e os amigos brasileiros, especialmente Millôr Fernandes, por quem Solnado nutria uma admiração imensa.
Digo "segunda casa", e não primeira, porque Portugal era o amor principal. "No Rio de Janeiro", confessou-me Solnado, "eu estava com saudades de Portugal. Não, saudades, não; eram mais ciúmes, porque para mim as saudades não existem. Tinha ciúmes disto tudo que existe cá. E pronto: embebedei-me muito porque fui a um aniversário, eles começaram a cantar fados e eu comecei a chorar, a chorar. Apanhei uma daquelas bebedeiras de sarjeta".
Esses "ciúmes" só se compreendem se entendermos Solnado como um rapaz de Lisboa, essa "cidade musical" da sua infância: uma cidade dominada pelas conversas dos vizinhos à janela, pelos pregões das varinas no bairro da Madragoa. Exatamente como lemos na poesia de Cesário Verde ou António Botto.
Foi em Lisboa que Solnado cresceu. E foi em Lisboa que se fez ator: primeiro, no "teatro de revista"; e, depois, suplantando a estrutura básica desse teatro popular com os seus famosos e requintados monólogos, de uma modernidade absoluta. Monólogos que arrancavam risadas histéricas nas plateias e, tantas vezes, fatais. Uma senhora chegou a morrer com uma síncope cardíaca, exausta pelas gargalhadas. "Mas nem tudo foi mau", assegurou-me ele, "também nasceu uma criança em Luanda. A mãe riu tanto que lhe rebentaram as águas".
A conversa terminou, já noite posta, com aulas de dicção. Eu começara um programa de debate na TV e ele resolveu ensinar-me a melhor forma de pronunciar corretamente as frases. Citou o conselho da atriz portuguesa Lucinda Simões: "Falar alto, falar claro e não deixar cair os finais". Para Solnado, o grande problema dos comentadores televisivos estava na incapacidade de susterem as frases até ao fim.
E foi dessa forma que eu me vi, na presença de uma lenda octogenária com espírito de adolescente, a pronunciar frases aleatórias de um jornal, em voz alta, e sem comer as palavras. Que Audrey Hepburn me perdoe, mas foi o melhor "My Fair Lady" da minha vida.

jpcoutinho@folha.com.br

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