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ARTIGO
Sem Pietro Citati não compreenderíamos Kafka
CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Às vezes entro no mar em
Veracruz, o porto mexicano
fundado por Hernán Cortés em
1519 e cidade natal de meu pai.
Sinto, ao fazê-lo, que me banham não apenas as águas do golfo do México, mas também as do
Mediterrâneo, que chegam ao Caribe e ao golfo desde os Dardanelos, Messina e Gibraltar, atravessando o Atlântico num grande ato
de reconhecimento entre a Europa e a América.
É por isso que saúdo com tanto
entusiasmo o Prêmio da Latinidade outorgado ao grande escritor
italiano Pietro Citati.
Sinto que, juntamente com o
prêmio, devolvo a ele uma corrente de reconhecimento latino
que, desta vez, sai de Veracruz, do
golfo do México e do Caribe, atravessa o Atlântico e abre caminho
entre os Pilares de Hércules para
banhar as costas dos mares Ligúrio e Tirreno, tão próximos da terra natal de Citati, Florença.
Leio e admiro Citati há muitos
anos.
Vejo em sua obra um grande arco europeu: da história da unidade à distância -Alexandre da
Macedônia-, à consagração da
idéia da Europa no equilíbrio espiritual -Goethe de Weimar-,
até a dispersão na proximidade
do Mal -Kafka de Praga.
Essa grande trilogia da crítica literária e biográfica em Citati nos
leva a empreender uma reflexão
profunda sobre o destino da Europa, suas grandes ilusões, suas
grandes realizações, suas grandes
omissões, seus grandes renascimentos.
O Alexandre de Citati estende a
Europa da Espanha à Índia. Seu
triunfo é seu fracasso. A extensão
excessiva dilui: a Europa precisa
retornar à Europa para dar ao
mundo o melhor da Europa, concentrada em seu território, ilimitada em sua influência. Como não
nos surpreendermos com a mimese universal das formas que
transcende as fronteiras e que o
escritor espanhol Juan Goytisolo
observou, com chamativa beleza,
entre as montanhas da Capadócia
conquistadas por Alexandre e a
Barcelona imaginada por Gaudí?
Esse é o equilíbrio dos reflexos
que Citati nos entrega em seu esplêndido livro sobre Goethe.
"Voilà un homme!", disse Bonaparte, em frase que ficou famosa,
ao se encontrar com Goethe em
Erfurt. Mas que homem era aquele homem? Ele desceu às profundezas do inferno com seu "Fausto" e subiu até as alturas do céu
com suas "Elegias Romanas".
Mas, como bom europeu, não
permaneceu nem no céu nem no
inferno, e sim na terra -e, de preferência, na terra de Mignón, a
terra latina "onde floresce a laranjeira".
Nada floresce na Europa terrível
que serve de pano de fundo e profecia para o dilacerante estudo de
Citati sobre Kafka.
Sempre pensei que o escritor indispensável do terrível século 20
fosse Kafka. Sem ele, não compreenderíamos nosso tempo e,
sem Citati, não compreenderíamos Kafka.
É que Citati, com imensa coragem intelectual e moral, se atreve
a pensar o impensável: que em "O
Processo", de Kafka, Joseph K. seja culpado. Que a aparente vítima
seja o possível culpado.
Citati não se afasta dos níveis
biográficos de Kafka e sua relação
com o pai, o judaísmo, a vida burguesa e profissional e sua cidade,
Praga, a mãezinha com garras.
Apesar de tudo, Gregorio Samea
prefere, nos diz Citati, ser um filho
sacrificado do que um inseto livre.
É um Isaac cujo sacrifício, em "A
Metamorfose", não é interrompido pelo Anjo de Deus.
E o escritor mexicano Sealtiel
Alatriste, em sua novela recente
"El Daño", nos oferece um Kafka
em relação íntima com sua mãe,
que sacrifica sua própria vocação
musical pelo gênio literário do filho.
Mas a proposta de Citati, que
pode parecer escandalosa -que a
vítima seja culpada-, se torna luminosamente rigorosa quando
nos faz compreender que o poder
é virtual e que a vítima do poder
concretiza uma força que, de outro modo, seria inexistente.
Nós vestimos o imperador nu.
Nós convertemos o fantasma do
poder no corpo do poder.
O que Kafka faz é apenas nos
apontar a desproporção que existe entre o poder real e o relato do
poder. E disso deriva a pergunta:
se o poder torna eficaz sua própria ficção, como pode a cultura
tornar eficaz sua própria realidade?
Em Pietro Citati, a resposta é a
que formula a pergunta.
Como Karl Krause, Citati sabe
que, na arte, a solução do enigma
é um novo enigma.
Ele sabe, como Gertrude Stein
ao morrer, que, se ignoramos a
resposta, podemos pelo menos
formular a pergunta.
Pietro Citati recorre ao grande
corpo da latinidade, do império
de Alexandre, o grego, até o fascínio italiano de Goethe pela recuperação da tragédia européia,
usurpada pelo crime histórico no
judeu centro-europeu Kafka.
Ele mesmo nos dá a chave de
seus valores. Citati possui a inteligência que encara, sem pestanejar, um Mal que conhece todos os
disfarces diante de um Bem que,
por sê-lo, não sabe fingir.
Porém, numa primavera persa,
como se regressasse ao manancial
da história e da linguagem, ele nos
diz, em seu belíssimo percurso
por Cheroés: "Minha liberdade
consistiu em religar os mil elementos de marchetaria que o
tempo me oferecia".
Por ele reclama essa maravilhosa liberdade autoral.
Transformar uma série de histórias religiosas na biografia de
um santo que nunca existiu.
Compor um relato que seria como o arquétipo de todos os relatos de busca.
Misturar as metáforas. Reinventar o que já foi inventado. Reescrever o que já foi escrito.
"No final, me dei conta de que
tinha escrito ao mesmo tempo
um livro de história e uma novela", conclui Citati, "um conjunto
de imagens e uma viagem entre
símbolos".
"Desde suas origens", nos diz o
Prêmio 2000 da Latinidade, "a
verdade literária é encontrada no
engano".
Não dizia outra coisa Dostoiévski ao falar de Cervantes: em "Dom
Quixote", a verdade é salva por
uma mentira.
Em Pietro Citati, é a imaginação
que, ao final, nos devolve a verdade. Imaginar a ficção é descobrir a
verdade da mentira. Como nas
grandes touradas, entrego as armas ao novo toureiro.
Saudações, Pietro Citati. Felicidades em sua volta à arena (*).
* O Prêmio da Latinidade é concedido
pela Academia Francesa e pela Academia Brasileira de Letras. O primeiro premiado, em 1999, foi Carlos Fuentes. O
segundo, este ano, Pietro Citati.
Tradução Clara Allain
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