São Paulo, segunda-feira, 11 de setembro de 2000

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ARTIGO
Sem Pietro Citati não compreenderíamos Kafka

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Às vezes entro no mar em Veracruz, o porto mexicano fundado por Hernán Cortés em 1519 e cidade natal de meu pai.
Sinto, ao fazê-lo, que me banham não apenas as águas do golfo do México, mas também as do Mediterrâneo, que chegam ao Caribe e ao golfo desde os Dardanelos, Messina e Gibraltar, atravessando o Atlântico num grande ato de reconhecimento entre a Europa e a América.
É por isso que saúdo com tanto entusiasmo o Prêmio da Latinidade outorgado ao grande escritor italiano Pietro Citati.
Sinto que, juntamente com o prêmio, devolvo a ele uma corrente de reconhecimento latino que, desta vez, sai de Veracruz, do golfo do México e do Caribe, atravessa o Atlântico e abre caminho entre os Pilares de Hércules para banhar as costas dos mares Ligúrio e Tirreno, tão próximos da terra natal de Citati, Florença.
Leio e admiro Citati há muitos anos.
Vejo em sua obra um grande arco europeu: da história da unidade à distância -Alexandre da Macedônia-, à consagração da idéia da Europa no equilíbrio espiritual -Goethe de Weimar-, até a dispersão na proximidade do Mal -Kafka de Praga.
Essa grande trilogia da crítica literária e biográfica em Citati nos leva a empreender uma reflexão profunda sobre o destino da Europa, suas grandes ilusões, suas grandes realizações, suas grandes omissões, seus grandes renascimentos.
O Alexandre de Citati estende a Europa da Espanha à Índia. Seu triunfo é seu fracasso. A extensão excessiva dilui: a Europa precisa retornar à Europa para dar ao mundo o melhor da Europa, concentrada em seu território, ilimitada em sua influência. Como não nos surpreendermos com a mimese universal das formas que transcende as fronteiras e que o escritor espanhol Juan Goytisolo observou, com chamativa beleza, entre as montanhas da Capadócia conquistadas por Alexandre e a Barcelona imaginada por Gaudí?
Esse é o equilíbrio dos reflexos que Citati nos entrega em seu esplêndido livro sobre Goethe. "Voilà un homme!", disse Bonaparte, em frase que ficou famosa, ao se encontrar com Goethe em Erfurt. Mas que homem era aquele homem? Ele desceu às profundezas do inferno com seu "Fausto" e subiu até as alturas do céu com suas "Elegias Romanas". Mas, como bom europeu, não permaneceu nem no céu nem no inferno, e sim na terra -e, de preferência, na terra de Mignón, a terra latina "onde floresce a laranjeira".
Nada floresce na Europa terrível que serve de pano de fundo e profecia para o dilacerante estudo de Citati sobre Kafka.
Sempre pensei que o escritor indispensável do terrível século 20 fosse Kafka. Sem ele, não compreenderíamos nosso tempo e, sem Citati, não compreenderíamos Kafka.
É que Citati, com imensa coragem intelectual e moral, se atreve a pensar o impensável: que em "O Processo", de Kafka, Joseph K. seja culpado. Que a aparente vítima seja o possível culpado.
Citati não se afasta dos níveis biográficos de Kafka e sua relação com o pai, o judaísmo, a vida burguesa e profissional e sua cidade, Praga, a mãezinha com garras. Apesar de tudo, Gregorio Samea prefere, nos diz Citati, ser um filho sacrificado do que um inseto livre. É um Isaac cujo sacrifício, em "A Metamorfose", não é interrompido pelo Anjo de Deus.
E o escritor mexicano Sealtiel Alatriste, em sua novela recente "El Daño", nos oferece um Kafka em relação íntima com sua mãe, que sacrifica sua própria vocação musical pelo gênio literário do filho.
Mas a proposta de Citati, que pode parecer escandalosa -que a vítima seja culpada-, se torna luminosamente rigorosa quando nos faz compreender que o poder é virtual e que a vítima do poder concretiza uma força que, de outro modo, seria inexistente.
Nós vestimos o imperador nu.
Nós convertemos o fantasma do poder no corpo do poder.
O que Kafka faz é apenas nos apontar a desproporção que existe entre o poder real e o relato do poder. E disso deriva a pergunta: se o poder torna eficaz sua própria ficção, como pode a cultura tornar eficaz sua própria realidade?
Em Pietro Citati, a resposta é a que formula a pergunta.
Como Karl Krause, Citati sabe que, na arte, a solução do enigma é um novo enigma.
Ele sabe, como Gertrude Stein ao morrer, que, se ignoramos a resposta, podemos pelo menos formular a pergunta.
Pietro Citati recorre ao grande corpo da latinidade, do império de Alexandre, o grego, até o fascínio italiano de Goethe pela recuperação da tragédia européia, usurpada pelo crime histórico no judeu centro-europeu Kafka.
Ele mesmo nos dá a chave de seus valores. Citati possui a inteligência que encara, sem pestanejar, um Mal que conhece todos os disfarces diante de um Bem que, por sê-lo, não sabe fingir.
Porém, numa primavera persa, como se regressasse ao manancial da história e da linguagem, ele nos diz, em seu belíssimo percurso por Cheroés: "Minha liberdade consistiu em religar os mil elementos de marchetaria que o tempo me oferecia".
Por ele reclama essa maravilhosa liberdade autoral.
Transformar uma série de histórias religiosas na biografia de um santo que nunca existiu.
Compor um relato que seria como o arquétipo de todos os relatos de busca.
Misturar as metáforas. Reinventar o que já foi inventado. Reescrever o que já foi escrito.
"No final, me dei conta de que tinha escrito ao mesmo tempo um livro de história e uma novela", conclui Citati, "um conjunto de imagens e uma viagem entre símbolos".
"Desde suas origens", nos diz o Prêmio 2000 da Latinidade, "a verdade literária é encontrada no engano".
Não dizia outra coisa Dostoiévski ao falar de Cervantes: em "Dom Quixote", a verdade é salva por uma mentira.
Em Pietro Citati, é a imaginação que, ao final, nos devolve a verdade. Imaginar a ficção é descobrir a verdade da mentira. Como nas grandes touradas, entrego as armas ao novo toureiro.
Saudações, Pietro Citati. Felicidades em sua volta à arena (*).


* O Prêmio da Latinidade é concedido pela Academia Francesa e pela Academia Brasileira de Letras. O primeiro premiado, em 1999, foi Carlos Fuentes. O segundo, este ano, Pietro Citati.


Tradução Clara Allain


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