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CONTARDO CALLIGARIS
Fazer a coisa certa
Hoje é o segundo aniversário do ataque de 11 de setembro de 2001.
Nos primeiros dias após o atentado, a imprensa publicou os relatos dos parentes e dos amigos com
quem as vítimas se comunicaram
telefonicamente enquanto viviam
sua última hora.
Mais tarde, vários sobreviventes
escreveram suas memórias. O livro mais tocante talvez seja "Last
Man Down: a New York City Fire
Chief and the Collapse of the
World Trade Center" (o último
homem a descer: um chefe dos
bombeiros de Nova York e o colapso do WTC), de Richard Picciotto (o oficial) e Daniel Paisner
(o escritor que o ajudou na redação).
Recentemente, as autoridades
do porto de Nova York tornaram
públicas as gravações das chamadas que, na manhã do dia 11, foram recebidas e feitas pela central
de segurança do World Trade
Center. A imprensa americana
reproduziu trechos.
Os livros e as dezenas de recortes de jornais e revistas estão em
cima de minha mesa. No meio do
luto e da tristeza pelas incertas sequelas do atentado, uma constatação salva o dia: é extraordinário como houve pessoas para fazer a coisa certa na hora do "vamos ver".
Há a força de espírito de muitas
vítimas que, apesar da morte iminente, encontraram as palavras
necessárias para que pudesse continuar a vida das pessoas amadas
que lhes sobreviveriam. No último contato telefônico, esqueceram-se de seu desamparo para inventar um adeus que não condenasse o outro ao desespero.
E há mil gestos generosos que
foram definidos como heróicos,
mas que, no relato dos protagonistas, foram banais. O chefe Picciotto relata, por exemplo, sua subida à torre norte do World Trade Center e, sobretudo, sua descida. Depois do colapso da torre sul,
ele mandou seus homens se colocarem a salvo e, com uma pequena tropa, continuou inspecionando cada andar para que ninguém
fosse deixado para trás. Encontraram um grupo de inválidos
que não podiam servir-se da escada. Começaram, então, a carregá-los, embora soubessem que
provavelmente a torre na qual estavam também cairia, como
aconteceu.
Picciotto foi encontrado horas
mais tarde nos escombros, salvo
milagrosamente por uma trave
de sustentação que o abrigou.
Ora, ao ler essas histórias, sabemos imediatamente quem fez certo e quem fez errado.
Além disso, quem agiu "certo"
não teve nem se deu o tempo de
consultar princípios gerais ou
modelos. Agiu sem hesitação e
sem a consciência de um julgamento futuro em que ele poderia
sair bem ou mal na foto.
O paradoxo moral que esses
gestos "certos" nos propõem é o
seguinte: existe, tanto nos protagonistas quanto em nós, leitores
de suas gestas, um consenso imediato sobre o certo e o errado, e esse consenso não é propriamente o
efeito de princípios comuns.
Claro, podemos adotar uma lista de preceitos morais instituídos:
o decálogo, por exemplo. Mas logo estaremos discutindo infinitas
exceções e casos particulares.
Roubar é errado, mas o que pensar de Robin Hood? E a mãe que
rouba uma laranja para o filho
que morre de sede? Invejar é errado, mas quem dirá a diferença
entre a inveja e a vontade de
emular? Matar é errado, mas há a
legítima defesa, a reação justificável e a eutanásia. E o que dizer do
aborto? Desejar a mulher do vizinho é errado, está bem, mas e se o
vizinho é um cão e a gente se
apaixona?
A moral é um saber prático. Ao
agir ou ao considerar as ações dos
outros, sabemos o que é certo não
tanto por referência racional a
princípios gerais, mas porque
compartilhamos experiências
práticas parecidas. Se é que existe
um fundo moral universal, ele
não depende de um esforço racional, que seria o mesmo em todas
as culturas; depende do fato de
que, nas várias culturas, talvez se
repitam formas básicas e comuns
da experiência humana.
Os adolescentes têm razão
quando acham ridículas nossas
tentativas de lhes ensinar a moral
à força de normas ou mesmo à
força de exemplos, que, aliás,
nunca se aplicam ao que eles estão vivendo. De qualquer forma,
quando queremos ser exemplares, nossos atos perdem uma qualidade essencial: seu caráter espontâneo e imediato. Para transmitir algum senso moral, seria
melhor simplesmente agir da maneira certa, sem fazer poses e sem
recorrer a princípios.
Comecei esta coluna com o aniversário do 11 de Setembro, e eis
que me ocorre mais um necrológio: poucos dias atrás, morreu
Donald Davidson, aos 86 anos.
Davidson era um dos maiores filósofos das últimas décadas (recentemente, em português, foi publicado "Ensaios sobre a Verdade"). Devemos-lhe uma crítica
conclusiva (espera-se) do estilo
racionalista cartesiano em matéria de pensamento e de busca da
verdade.
Como é que, durante séculos,
aceitamos como óbvio o "penso,
logo existo", não sei. Mas, graças
a Davidson, é possível entender
que ninguém existe sozinho porque ninguém pensa sozinho. Está
na hora de corrigir assim: "Converso com os outros, debato-me
no mundo, logo existo". A verdade é fruto de encontros e diálogos
concretos, não de deduções solitárias e abstratas.
Em matéria de moral, essa idéia
é mais verdadeira ainda. Não há
lições de moral nem exemplos
ilustres. Só pessoas que, sem hesitar e sem saber por que, às vezes,
fazem a coisa certa.
ccalligari@uol.com.br
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