São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2004

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HISTÓRIA(S) NO CINEMA

Marc Ferro, que participa de debates no Rio, São Paulo e Campinas na próxima semana, discute usos e abusos da imagem

SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num momento em que um filme como "Olga" desencadeia críticas negativas e defensores apaixonados, é bom ter por perto Marc Ferro, o historiador francês que, nos anos 70, passou a utilizar o cinema como objeto de estudo.
Na próxima semana, o historiador participa do Recine, no Rio, depois fala no Sesc Paulista, em São Paulo, e se apresentará também na Unicamp. Ferro traz de novo à discussão os usos e abusos da imagem, não se limitando apenas às formas de representação da história pelo cinema mas também de como o cinema e a televisão se converteram em produtores autorizados de interpretações históricas, superando os livros.
Autor de extensa bibliografia sobre a história contemporânea, Ferro não se limitou a criticar imagens. Ele é também um produtor de documentários e programas de televisão.
É no trânsito entre a observação crítica das imagens e a sua construção que pôde realizar seus trabalhos mais significativos, como o programa "Histoire Parallèle", onde comparava cinejornais produzidos durante a guerra pelos diferentes países beligerantes, ou seus livros, onde a "história" dos historiadores tem o mesmo estatuto dos mitos, fábulas e filmes.
No Rio, Ferro vai participar de um colóquio sobre "Cinema Revolucionário". Mostrará seu filme sobre Lênin, feito em 1970 a partir de documentos fílmicos inéditos, além de filmes de um minuto onde sintetiza em imagens a história do século 20. Leia abaixo trechos da entrevista de Ferro à Folha, por telefone, de Paris.
 

Folha - O que há de particular nos filmes sobre as revoluções?
Marc Ferro -
Em geral, os filmes mostram como os indivíduos reagem a um evento revolucionário de cuja organização não participaram. No documentário sobre Lênin, utilizei imagens de arquivo que eram, em grande medida, desconhecidas. O filme não tem narrador, pois um comentário, nesse caso, seria necessariamente ideológico. O comentário foi feito apenas de frases de Lênin.

Folha - Mas o senhor crê que essa é a melhor forma de ser fiel ao pensamento do sujeito em questão?
Ferro -
Sim. Lênin comenta a situação mundial de 1910 a 1930, e essas frases permitem conhecer outras situações históricas e examinar como o cinema representa os fenômenos históricos. Por outro lado, foi fazendo esse filme que eu percebi que é impossível, mesmo no documentário histórico, não utilizar processos dramáticos narrativos, e isso ao mesmo tempo enriqueceu também a minha forma de encarar o meu trabalho como historiador. Permitiu compreender que os filmes não são apenas reveladores de uma sociedade. A estrutura de um roteiro tem modelos de narração, cujo processo dramático ajuda o imaginário do historiador.

Folha - Isso ajuda também a perceber como o cinema representa a história?
Ferro -
Os filmes históricos americanos, feitos nos anos 50, glorificam a marcha para o Oeste ou mostram o triunfo do Ocidente sobre o Oriente. "Sansão e Dalila", "Ben Hur" legitimam o imperialismo americano primitivo, ou seja, a conquista do Oeste, e o cristianismo que vai junto.
Por outro lado, no caso da representação das revoluções, o cinema americano só mostra as conseqüências negativas: crimes, abusos, violência. Eles não mostram as causas das revoluções, ou por que elas existem. No sentido oposto, o cinema russo dos anos 20 mostra as causas e não mostra as conseqüências. Exemplos são "A Mãe", de Pudovkin e "Encouraçado Potemkin", de Eisenstein.
Assim, se observa como a direção, a escolha dos cenários e personagens é ideológica. Desta forma, temos dois enfoques sobre a revolução totalmente inversos.

Folha - E o filme de Eric Rohmer, "A Inglesa e o Duque", introduz um outro ponto de vista?
Ferro -
O filme de Rohmer sobre o tema da revolução inova apenas do ponto de vista formal, mas no conteúdo é o mais reacionário dos filmes reacionários.

Folha - Mas ele tem um ponto de vista interessante?
Ferro -
Sim, sem dúvida, mas é sempre o modelo das boas e belas pessoas vítimas de gente ruim e feia, da multidão ensandecida, do povo, ou seja, dentro da tradição contra-revolucionária, muito comum no pós-guerra francês na historiografia, na literatura e no cinema, com Sacha Guitry, por exemplo. Claro que Guitry é mais leve e muito menos bem cuidado esteticamente do que Rohmer, e sua abordagem não tem a mesma densidade. Entretanto Rohmer, que é conhecido como um bom cineasta, faz aqui um filme com o ponto de vista da direita. Ele revelou nesse filme seus sentimentos políticos profundos.

Folha - O cinema está voltando a se engajar em causas políticas? Como o senhor vê "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore?
Ferro -
Sim, parece que nos Estados Unidos há uma tendência a querer, como sempre, fazer do cinema um agente político. Mas a questão que se coloca é se ele é eficaz politicamente, e isso não há como medir ou controlar. Em geral, o cinema engajado é eficaz pelas críticas que faz e, sobretudo, pela repercussão crítica positiva que ele obtém na imprensa.
São filmes bem vistos entre os intelectuais, mas não passam disso. Por outro lado, não há dúvida de que se assiste hoje nos Estados Unidos, de novo, um cinema com tendências políticas, coisa que não se ousa fazer na Europa. É o caso de Michael Moore, mas pode-se dizer que também é o de Spielberg, com seu "A Lista de Schindler", que pode ser discutível do ponto de vista formal, mas que resgatou um "justo", coisa que o envolvimento dos europeus não permitiu fazer até hoje. A Europa não é capaz de ir até o fundo em seus problemas com a guerra. Mas isso acontece também com os americanos, com relação ao problema negro e aos índios. São os tabus de cada sociedade.

Folha - Os americanos jamais falam dos índios, e no entanto sempre falam do Oeste.
Ferro -
Os americanos fizeram alguns filmes sobre o massacre dos índios ("O Pequeno Grande Homem", e, mais recentemente, "Dança com Lobos"), mas isso não mudou em nada a situação deles nos EUA. Eles continuam nas mesmas reservas de antes. Nada mudou. O cinema não tem nenhuma influência política, ainda que deseje isso muitas vezes. Ele não tem a eficácia que se imagina, ou ela não está exatamente ali onde se pensa que está.

Folha - Então, o que é específico do cinema de Michael Moore?
Ferro -
O produto de Michael Moore é fazer dele mesmo um agente da verdade. E sem dúvida está conseguindo alguma coisa.


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