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RODAPÉ
Mediações poéticas do colapso
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A editora carioca 7 Letras,
que vem fazendo um trabalho fundamental de divulgação da
poesia contemporânea, lança nesta segunda-feira cinco títulos de
uma nova coleção, intitulada
"Guizos". Dois são de autores
presentes há tempos na cena literária: "Restos & Estrelas & Fraturas" (reedição do volume publicado por Afonso Henriques Neto
em 1975) e "Coisas Imediatas"
(reunindo os quatro livros anteriores de Heitor Ferraz Mello e o
inédito "Pré-desperto").
Os outros títulos são "Cosmologia", segundo livro de Marcelo
Diniz, e as estréias literárias de
Annita Costa Malufe ("Fundos
para Dias de Chuva") e Diego Vinhas ("Primeiro as Coisas Morrem") -autores pouco conhecidos, mas cuja qualidade comprova a seriedade da coleção. É impossível fazer aqui uma análise
detida de cada título, mas pode-se
detectar em alguns deles a tentativa de responder a uma das perguntas mais persistentes na poesia atual: de onde vem e a quem se
destina a voz de quem escreve?
Quer fale de memórias entranhadas na consciência, quer seja
um registro do real ou um aceno
para um mais além do real, estamos acostumados a pensar a arte
verbal como operação de metamorfose da experiência, como
uma inversão das hierarquias da
linguagem na qual as coisas se
submetem à ordem das palavras.
Um livro como "Restos & Estrelas & Fraturas" associa esses
transtornos da realidade a um
gesto transgressivo que abole as
fronteiras do mundo e a própria
linguagem: "Aprende todas as palavras/ antes de reduzi-las a
Uma// ser infinitas palavras/ não
precisar de Nenhuma".
De todo modo, aqui ainda há
um sujeito contraposto à realidade utilitária que a poesia viria
idealmente violar -e por aí vemos como Afonso Henriques Neto pertence a um momento utópico, em que a literatura é um convite à sublevação contra tudo o
que é instituído.
A partir do momento, porém,
em que não apenas as promessas
de transformação do mundo pelo
espírito não se realizaram, mas a
própria realidade se "desrealizou"
em identidades instáveis, a literatura passa a expressar de modo
mais obsessivo esse desnorteamento. A obra poética de Heitor
Ferraz Mello, resumida em "Coisas Imediatas", descreve bem tal
percurso rumo ao não-reconhecimento do mundo e de si mesmo.
Se, nos poemas de "Resumo do
Dia" e "A Mesma Noite", havia
um sentido de anotação das coisas cotidianas, um livro como
"Hoje como Ontem ao Meio-dia",
com seu lirismo angustiado (embora desinflado), mostrou que o
intimismo miúdo era uma tábua
de salvação para a solidão irrecorrível da condição moderna.
Com "Pré-Desperto" (que abre
"Coisas Imediatas", mas que fecha um ciclo nessa obra já madura), Ferraz Mello aprofunda o colapso de sua demanda lírica. Ainda estão ali suas nostalgias, materializadas no vaso de flores sobre
o beiral ou na contemplação da
mulher e do "único fio branco/
que brilha/ furiosamente/ na densidade/ de seus cabelos pretos".
Mas o poeta não se reconhece
mais em sua própria voz ("tudo
parece uma besteira,/ a experiência diluída no cotidiano"). Enquanto, num poema, "o corpo
procura um ponto de fuga", noutro se acirra "aquela sensação de
vácuo/ de escada aberta, de morto-vivo/ sem projeto imediato".
Obviamente, não há literatura
sem mediações ("a dor/ é a falta
de experiência,/ de forma,/ com
que se diga dor"), mas a procura
de algo imediatamente reconhecível é a contrapartida da falta de familiaridade consigo mesmo: "É
daqui que eu falo./(...) É daqui/
apesar de eu mesmo/ sentir que
me falto/ e me falto tanto/ que
nem sei se sou eu/ ou a saudade
que não consola".
E esse poema, por sua vez, remete a uma fragmentação subjetiva que, enunciada por Pessoa, parece ser a maré montante da poesia atual, passando pelo filtro de
Ana Cristina César -poeta citada
explicitamente tanto por Annita
Malufe (cuja poesia intimista busca o "abismo/ que existe em cada
móvel/ em cada dobra do lençol
em cada cômodo/ em cada lasca
da parede ou nos tacos/ ou nos
azulejos do banheiro/ com seus
vãos mofados povoados/ viventes") quanto por Diego Vinhas
(cujos poemas herméticos e duros forjam um "abrigo a fórceps"
para uma existência descrita como "carne e equívoco").
Restos & Estrelas & Fraturas
Autor: Afonso Henriques Neto
Quanto: R$ 18 (84 págs.)
Coisas Imediatas
Autor: Heitor Ferraz Mello
Quanto: R$ 25 (172 págs.)
Cosmologia
Autor: Marcelo Diniz
Quanto: R$ 15 (64 págs.)
Fundos para Dias de Chuva
Autor: Annita Costa Malufe
Quanto: R$ 15 (56 págs.)
Primeiro as Coisas Morrem
Autor: Diego Vinhas
Quanto: R$ 15 (56 págs.)
Editora: 7 Letras
Lançamento: 13/9, bar Balcão (r. Dr.
Melo Alves, 150, SP, tel. 0/xx/11/3063-6091), às 20h
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