São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2004

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RODAPÉ

Mediações poéticas do colapso

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A editora carioca 7 Letras, que vem fazendo um trabalho fundamental de divulgação da poesia contemporânea, lança nesta segunda-feira cinco títulos de uma nova coleção, intitulada "Guizos". Dois são de autores presentes há tempos na cena literária: "Restos & Estrelas & Fraturas" (reedição do volume publicado por Afonso Henriques Neto em 1975) e "Coisas Imediatas" (reunindo os quatro livros anteriores de Heitor Ferraz Mello e o inédito "Pré-desperto").
Os outros títulos são "Cosmologia", segundo livro de Marcelo Diniz, e as estréias literárias de Annita Costa Malufe ("Fundos para Dias de Chuva") e Diego Vinhas ("Primeiro as Coisas Morrem") -autores pouco conhecidos, mas cuja qualidade comprova a seriedade da coleção. É impossível fazer aqui uma análise detida de cada título, mas pode-se detectar em alguns deles a tentativa de responder a uma das perguntas mais persistentes na poesia atual: de onde vem e a quem se destina a voz de quem escreve?
Quer fale de memórias entranhadas na consciência, quer seja um registro do real ou um aceno para um mais além do real, estamos acostumados a pensar a arte verbal como operação de metamorfose da experiência, como uma inversão das hierarquias da linguagem na qual as coisas se submetem à ordem das palavras.
Um livro como "Restos & Estrelas & Fraturas" associa esses transtornos da realidade a um gesto transgressivo que abole as fronteiras do mundo e a própria linguagem: "Aprende todas as palavras/ antes de reduzi-las a Uma// ser infinitas palavras/ não precisar de Nenhuma".
De todo modo, aqui ainda há um sujeito contraposto à realidade utilitária que a poesia viria idealmente violar -e por aí vemos como Afonso Henriques Neto pertence a um momento utópico, em que a literatura é um convite à sublevação contra tudo o que é instituído.
A partir do momento, porém, em que não apenas as promessas de transformação do mundo pelo espírito não se realizaram, mas a própria realidade se "desrealizou" em identidades instáveis, a literatura passa a expressar de modo mais obsessivo esse desnorteamento. A obra poética de Heitor Ferraz Mello, resumida em "Coisas Imediatas", descreve bem tal percurso rumo ao não-reconhecimento do mundo e de si mesmo.
Se, nos poemas de "Resumo do Dia" e "A Mesma Noite", havia um sentido de anotação das coisas cotidianas, um livro como "Hoje como Ontem ao Meio-dia", com seu lirismo angustiado (embora desinflado), mostrou que o intimismo miúdo era uma tábua de salvação para a solidão irrecorrível da condição moderna.
Com "Pré-Desperto" (que abre "Coisas Imediatas", mas que fecha um ciclo nessa obra já madura), Ferraz Mello aprofunda o colapso de sua demanda lírica. Ainda estão ali suas nostalgias, materializadas no vaso de flores sobre o beiral ou na contemplação da mulher e do "único fio branco/ que brilha/ furiosamente/ na densidade/ de seus cabelos pretos".
Mas o poeta não se reconhece mais em sua própria voz ("tudo parece uma besteira,/ a experiência diluída no cotidiano"). Enquanto, num poema, "o corpo procura um ponto de fuga", noutro se acirra "aquela sensação de vácuo/ de escada aberta, de morto-vivo/ sem projeto imediato". Obviamente, não há literatura sem mediações ("a dor/ é a falta de experiência,/ de forma,/ com que se diga dor"), mas a procura de algo imediatamente reconhecível é a contrapartida da falta de familiaridade consigo mesmo: "É daqui que eu falo./(...) É daqui/ apesar de eu mesmo/ sentir que me falto/ e me falto tanto/ que nem sei se sou eu/ ou a saudade que não consola".
E esse poema, por sua vez, remete a uma fragmentação subjetiva que, enunciada por Pessoa, parece ser a maré montante da poesia atual, passando pelo filtro de Ana Cristina César -poeta citada explicitamente tanto por Annita Malufe (cuja poesia intimista busca o "abismo/ que existe em cada móvel/ em cada dobra do lençol em cada cômodo/ em cada lasca da parede ou nos tacos/ ou nos azulejos do banheiro/ com seus vãos mofados povoados/ viventes") quanto por Diego Vinhas (cujos poemas herméticos e duros forjam um "abrigo a fórceps" para uma existência descrita como "carne e equívoco").


Restos & Estrelas & Fraturas
    
Autor: Afonso Henriques Neto
Quanto: R$ 18 (84 págs.)
Coisas Imediatas
    
Autor: Heitor Ferraz Mello
Quanto: R$ 25 (172 págs.)
Cosmologia
    
Autor: Marcelo Diniz
Quanto: R$ 15 (64 págs.)
Fundos para Dias de Chuva
   
Autor: Annita Costa Malufe
Quanto: R$ 15 (56 págs.)
Primeiro as Coisas Morrem
   
Autor: Diego Vinhas
Quanto: R$ 15 (56 págs.)
Editora: 7 Letras
Lançamento: 13/9, bar Balcão (r. Dr. Melo Alves, 150, SP, tel. 0/xx/11/3063-6091), às 20h



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