São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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Religiosidade do escritor em seus últimos anos de vida é o assunto principal das conversas e dos discursos de despedida durante o velório e o enterro, ontem de tarde
Poeta João Cabral de Melo Neto é enterrado no Rio

Paulo Giandália/Folha Imagem
Marly de Oliveira ao lado do corpo de João Cabral de Melo Neto no velório do poeta, anteontem, na ABL


da Sucursal do Rio

O corpo do poeta João Cabral de Melo Neto foi enterrado ontem no início da tarde, no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no cemitério São João Batista (em Botafogo, zona sul do Rio).
A busca da religiosidade nos últimos meses de vida, depois de toda uma vida em que o poeta se declarou ateu, permeou as conversas e os discursos de despedida, durante o velório e o enterro.
"Meu pai sempre evitou voltar-se para si mesmo. Dizia que, quando se aposentasse, aproveitaria todo o tempo para ler e escrever, o que era uma maneira de continuar a não voltar-se para dentro de si. Mas aí começou a perder a visão e, sem poder ler, começou a pensar em sua vida. Assim se aproximou da religião", disse ontem João Cabral de Melo, o caçula dos cinco filhos do poeta.
Na missa de corpo presente, celebrada no Salão dos Poetas Românticos da ABL pelo padre Fernando Bastos de Ávila, companheiro de João Cabral na instituição, a reaproximação foi mais uma vez lembrada.
"Seus olhos se fecharam quando começaram a ver Deus face a face. Ele sai do tempo e envereda pela eternidade para encontrar aquele Deus, a eterna paixão de sua vida", disse o padre.
João Cabral morreu na manhã de sábado, quando rezava de mãos dadas com a segunda mulher, a poetisa Marly de Oliveira. "Achei que ele estava dormindo, como sempre fazia depois que rezávamos. Foi uma morte tranquila, serena. A morte que João gostaria de ter", disse a viúva.
Sobre o caixão foram colocadas as bandeiras de Pernambuco, seu Estado natal, e do América, time de futebol do Rio. João Cabral torcia pelo América de Recife, mas dizia que torcia "por qualquer América em qualquer cidade".
Cerca de cem pessoas passaram pelo velório do poeta. O vice-presidente, Marco Maciel, também pernambucano, esteve no velório e no enterro, representando o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Em pronunciamento à imprensa, FHC disse que "João Cabral era um homem que deixou uma marca profunda na literatura brasileira e que teve sempre uma correção extraordinária como poeta e diplomata".
O corpo de João Cabral de Melo Neto foi velado durante toda a manhã na ABL. Ao meio-dia, foi iniciada a missa de corpo presente. A viúva de João Cabral só chegou ao prédio da ABL quando a missa já estava quase no fim. Pouco antes da celebração, o filho mais velho do poeta, Rodrigo, havia ligado para a casa da madrasta perguntando se ela iria ou não.
"Vai começar ao meio-dia, com ela ou sem ela", dizia a um interlocutor pelo telefone celular. Marly de Oliveira não foi ao enterro. Após receber os cumprimentos no velório, ela voltou para casa. "Estou cansada e sentindo dores."
O poeta Ferreira Gullar esteve no velório. "João Cabral tinha uma qualidade poética incomparável, uma importância universal. Tinha também um sentido social impressionante em seus poemas. O interessante é que não gostava de sua obra mais conhecida, "Morte e Vida Severina", que considerava excessiva."
O acadêmico Celso Furtado lembrou o "companheiro de idéias em uma época difícil para o país". "João Cabral lutou pela liberdade de pensamento, assim como eu. Como dois nordestinos, nós nos queríamos muito", disse.
O acadêmico João Ubaldo Ribeiro lembrou a sonoridade das poesias do escritor. "Seus trabalhos eram musicais, apesar de ele dizer que não gostava de música."


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