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Cabral tinha esperança de voltar a enxergar
FÁBIO VICTOR
da Reportagem Local
Os últimos dias de João Cabral
de Melo Neto em seu apartamento no Rio de Janeiro foram, para a
mulher dele, a poetisa Marly de
Oliveira, de esperança.
Ela planejava levá-lo para a Suécia, onde, ouvira dizer, uma nova
técnica cirúrgica poderia recuperar a visão do marido, perdida havia sete anos em consequência de
uma degenerescência da retina.
Assim, achava, ele poderia retomar algum gosto pela vida (nos
últimos meses, o escritor sofria de
depressão).
"Eu quero ver se consigo levantar o ânimo dele, porque eu soube
que estão fazendo um enxerto nos
olhos lá na Suécia. Se eu conseguir
isso direitinho, e ele voltar a ver,
pode ser que melhore muito",
contou Marly à Folha no último
dia 19 de setembro, um domingo,
instantes antes de passar o telefone ao marido, no que seria a última entrevista concedida pelo
poeta.
Futebol
Em 12 minutos de conversa,
João Cabral de Melo Neto alternou momentos de bom humor e
indiferença. As frases eram encerradas invariavelmente com um
"compreende?" -cacoete de linguagem.
Embora demonstrando estar
com memória afiada, lembrando
detalhes de histórias de sua infância, a voz parecia cansada, e, no final da entrevista, as respostas
eram mais lacônicas.
"Estou com a vista muito ruim,
de forma que hoje eu não vou
mais ao futebol. Interesso-me no
rádio. Não acompanho o jogo inteiro, mas acompanho movimentos", afirmou, ao ser questionado
sobre o seu atual nível de interesse
pelo esporte.
"E, nos últimos anos, alguma
coisa no futebol chamou a atenção do sr.?"
"Não. Eu vivi muitos anos no
exterior, de forma que não podia
acompanhar o campeonato aqui
(no Brasil). Por exemplo, eu quase não vi o Pelé jogar. Eu vivia fora
do Brasil."
Depois disso, apenas mais uma
pergunta -sobre o América do
Recife, seu time de coração e tema
da reportagem-, recebida com
uma evasiva, aparentemente consequência de cansaço do poeta, de
79 anos.
Conforme combinado com
Marly, a entrevista limitou-se ao
tema futebol (publicada no caderno especial sobre a morte do poeta, ela seria originalmente usada
numa reportagem sobre o América do Recife, a ser editada no caderno Esporte), pois uma outra,
mais ampla e mais direcionada à
literatura, já havia sido solicitada
pelo jornal.
Recife-Sevilha
A conversa com João Cabral foi
precedida por uma outra, bem
mais longa, com Marly de Oliveira, que fez várias revelações sobre
as idiossincrasias do poeta e alguns planos do casal para o futuro.
Ele gostaria, por exemplo, de tê-la levado a Recife ("Quando o
João tiver em condições, vamos
lá") e Sevilha, na Espanha ("Ele
queria que eu conhecesse; saiu
uma edição linda dos "Poemas Sevilhanos", uma ocasião para a
gente poder ir"), cidades-chaves
na obra do poeta.
Havia lugares, porém, para onde o poeta jamais teria viajado
com a sua mulher.
"Eu tenho paixão pela Itália, sou
neta de italianos, mas ele tem horror a esse país. Diz nunca ter lido
um autor italiano, não se interessa
por eles. Diz que, no Recife, italiano era sinônimo de ladrão", contou Marly, com quem o poeta foi
casado por aproximadamente 13
anos e meio.
Outra curiosidade é o contato
de João Cabral com o ex-presidente Fernando Collor.
"O Collor de Mello tem um parentesco com ele. Uma vez, ele
(Collor) passou no Senegal (país
africano onde João Cabral atuou
como diplomata). O João não tinha simpatia, mas não antipatizava, porque disse que passou uma
noite inteira com o Collor e o
achou inteligente."
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