São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cabral tinha esperança de voltar a enxergar

FÁBIO VICTOR
da Reportagem Local

Os últimos dias de João Cabral de Melo Neto em seu apartamento no Rio de Janeiro foram, para a mulher dele, a poetisa Marly de Oliveira, de esperança.
Ela planejava levá-lo para a Suécia, onde, ouvira dizer, uma nova técnica cirúrgica poderia recuperar a visão do marido, perdida havia sete anos em consequência de uma degenerescência da retina. Assim, achava, ele poderia retomar algum gosto pela vida (nos últimos meses, o escritor sofria de depressão).
"Eu quero ver se consigo levantar o ânimo dele, porque eu soube que estão fazendo um enxerto nos olhos lá na Suécia. Se eu conseguir isso direitinho, e ele voltar a ver, pode ser que melhore muito", contou Marly à Folha no último dia 19 de setembro, um domingo, instantes antes de passar o telefone ao marido, no que seria a última entrevista concedida pelo poeta.

Futebol
Em 12 minutos de conversa, João Cabral de Melo Neto alternou momentos de bom humor e indiferença. As frases eram encerradas invariavelmente com um "compreende?" -cacoete de linguagem.
Embora demonstrando estar com memória afiada, lembrando detalhes de histórias de sua infância, a voz parecia cansada, e, no final da entrevista, as respostas eram mais lacônicas.
"Estou com a vista muito ruim, de forma que hoje eu não vou mais ao futebol. Interesso-me no rádio. Não acompanho o jogo inteiro, mas acompanho movimentos", afirmou, ao ser questionado sobre o seu atual nível de interesse pelo esporte.
"E, nos últimos anos, alguma coisa no futebol chamou a atenção do sr.?"
"Não. Eu vivi muitos anos no exterior, de forma que não podia acompanhar o campeonato aqui (no Brasil). Por exemplo, eu quase não vi o Pelé jogar. Eu vivia fora do Brasil."
Depois disso, apenas mais uma pergunta -sobre o América do Recife, seu time de coração e tema da reportagem-, recebida com uma evasiva, aparentemente consequência de cansaço do poeta, de 79 anos.
Conforme combinado com Marly, a entrevista limitou-se ao tema futebol (publicada no caderno especial sobre a morte do poeta, ela seria originalmente usada numa reportagem sobre o América do Recife, a ser editada no caderno Esporte), pois uma outra, mais ampla e mais direcionada à literatura, já havia sido solicitada pelo jornal.

Recife-Sevilha
A conversa com João Cabral foi precedida por uma outra, bem mais longa, com Marly de Oliveira, que fez várias revelações sobre as idiossincrasias do poeta e alguns planos do casal para o futuro.
Ele gostaria, por exemplo, de tê-la levado a Recife ("Quando o João tiver em condições, vamos lá") e Sevilha, na Espanha ("Ele queria que eu conhecesse; saiu uma edição linda dos "Poemas Sevilhanos", uma ocasião para a gente poder ir"), cidades-chaves na obra do poeta.
Havia lugares, porém, para onde o poeta jamais teria viajado com a sua mulher.
"Eu tenho paixão pela Itália, sou neta de italianos, mas ele tem horror a esse país. Diz nunca ter lido um autor italiano, não se interessa por eles. Diz que, no Recife, italiano era sinônimo de ladrão", contou Marly, com quem o poeta foi casado por aproximadamente 13 anos e meio.
Outra curiosidade é o contato de João Cabral com o ex-presidente Fernando Collor.
"O Collor de Mello tem um parentesco com ele. Uma vez, ele (Collor) passou no Senegal (país africano onde João Cabral atuou como diplomata). O João não tinha simpatia, mas não antipatizava, porque disse que passou uma noite inteira com o Collor e o achou inteligente."


Texto Anterior: Poeta João Cabral de Melo Neto é enterrado no Rio
Próximo Texto: Sua poesia não era escrita, era reescrita
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.